

Opinião
Medo e violência
Indivíduos amedrontados, seja por uma ameaça real ou devido a uma fantasia, tendem a se defender, por vezes, de forma violenta. Eis a raiz do bolsonarismo


A primeira conexão entre as palavras que intitulam esta coluna parece óbvia: sim, a violência gera medo. Se o Brasil da era Bolsonaro se tornou mais violento, atendendo às obsessões do ex-chefe da nação, é evidente que muitos brasileiros tenham se tornado mais medrosos. Mas a recíproca também é verdadeira: indivíduos amedrontados, seja por uma ameaça real ou devido a uma fantasia, tendem a se defender, por vezes, de forma violenta.
O paradoxo gerado durante os quatro anos da gestão bolsonarista é que uma porcentagem razoável de brasileiros que se tornaram mais violentos não tinha, provavelmente, razões concretas para sentir-se ameaçada. A julgar pelos noticiários, não foram os miseráveis e os famintos os grandes protagonistas do aumento da violência: foram os ricos e integrantes da classe média, insuflados pela paixão do ex-presidente pelas armas de fogo – vide o gesto infantil de imitar um revólver com os dedos polegar e indicador.
Parte da esquerda tentou, durante a ditadura (1964-1985), derrubar o governo. Idealistas, mas talvez fracos em análise de conjuntura, os militantes que ensaiaram recuperar a democracia mediante luta armada não apenas fracassaram em seu intento, como acabaram presos e torturados, muitos deles até a morte, por se recusarem a delatar companheiros.
Igualmente vitimados por regimes autoritários, Argentina, Chile e Uruguai julgaram e puniram, na redemocratização, os militares e demais responsáveis pelos assassinatos e desaparecimentos de dissidentes políticos. Já no Brasil, a ditadura terminou com a aprovação de uma anistia “ampla, geral e irrestrita”. Os guerrilheiros sobreviventes foram perdoados da mesma forma que os agentes do Estado, os algozes do regime militar. O efeito ideológico dessa anistia foi a convicção, confortável para grande parte dos brasileiros, de que não havia por que criminalizar os militares: tratava-se de uma guerra em que um lado venceu e o outro, infelizmente, perdeu.
Tive contato com os efeitos cínicos dessa anistia bilateral no período de 2012 a 2014, em que vivi a honra de integrar a Comissão Nacional da Verdade, aprovada no Congresso por iniciativa da então presidente Dilma Rousseff. Não podemos nos queixar de que os trabalhos tenham sido ignorados pela mídia. Algumas de nossas conquistas saíram até no Jornal Nacional. Foi o caso da descoberta dos restos mortais de um dos desaparecidos políticos no cemitério de Brasília, por mérito do nosso assessor Pedro Pontual. Transladamos, para o Brasil, o corpo do ex-presidente João Goulart, para ser sepultado com honras de chefe de Estado. Já a Comissão da Verdade de São Paulo conseguiu, na gestão do prefeito Fernando Haddad, rebatizar locais públicos que homenageavam torturadores.
Só que a divulgação do nosso trabalho pelos meios de comunicação não produziu, na população que não vivenciou a ditadura nem acompanhou as notícias que vieram a público depois de 1985, um efeito de conquista e esclarecimento. No meu caso, pois costumo andar a pé nas ruas, fui abordada três vezes por pessoas que reconheceram meu rosto nas breves aparições da CNV no telejornal. Ficava contente quando me perguntavam se era integrante da comissão, achando que receberia apoio. Só que não. “E o outro lado, vocês não vão investigar?” Perplexa, questionava a qual lado eles estavam se referindo. A réplica era desoladora: “O lado dos terroristas!”
De nada valia meu esforço para esclarecer a diferença entre crimes praticados por cidadãos comuns que se levantaram contra a ditadura e os militares, que matavam sob tortura prisioneiros que, a rigor, deveriam estar protegidos de abusos, sob sua custódia. Meus interlocutores, sem exceção, faziam um muxoxo de desprezo e viravam as costas.
A brava presidente que criou a CNV sofreu um impeachment injusto, no meio de seu segundo mandato. Durante a reunião da Câmara que votou por sua deposição, um sujeito chamou atenção por dedicar seu voto ao torturador Carlos Alberto Brilhante Ustra, algoz de Dilma na prisão. Estou convicta de que a razão mais forte para o afastamento dela tenha sido o ódio despertado por sua iniciativa de conseguir aprovar a CNV.
Toda época que tem medo de si mesma tende à reparação, escreveu certa vez Thomas Mann. Tal medo de se defrontar com seu passado vale para compreendermos o golpe contra Dilma, assim como a bravata de um deputado do baixo clero adulador de torturadores, que depois viria a se eleger presidente. Cumprindo o que prometera aos seus asseclas, ele conduziu um governo ao gosto dos apoiadores da ditadura. Os efeitos do bolsonarismo ainda formam um espectro a aterrorizar os brasileiros. Espero que esse tema perca força e nunca mais precise ser abordado nesta coluna. •
Publicado na edição n° 1292 de CartaCapital, em 10 de janeiro de 2024.
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