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O apocalíptico agora

Na trama de ‘O Mundo Depois de Nós’, Rumaan Alam expõe a dependência tecnológica e a ânsia pelo consumo

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Confinados. O elogiado best seller do autor norte-americano foi transformado em um filme que teve, entre seus produtores, Barack e Michelle Obama – Imagem: Netflix
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Rumaan Alam nasceu em 1977 e foi criado em ­Washington DC, a capital dos Estados Unidos. Ele se formou em Escrita pelo Oberlin College e é autor de três romances, o último dos quais, O Mundo Depois de Nós, recebeu ótimas críticas quando foi lançado, em 2020, tornou-se best seller na lista do The New York Times e foi finalista do National Book Award e do Orwell Prize.

O Mundo Depois de Nós é o primeiro livro do autor publicado no Brasil. O lançamento, por aqui, pega carona no filme originado do romance, disponibilizado pela Netflix na sexta-feira 8 (leia texto na pág. ao lado)

A trama, que conta a história de duas famílias, uma branca e outra negra, jogadas em uma luxuosa casa de férias em Long Island em meio a eventos apocalípticos, foi descrita pelo Observer como “simplesmente de tirar o fôlego… Um livro extraordinário, ao mesmo tempo inteligente, envolvente e alucinante… tão aterrorizante e presciente quanto ­Estrada, de Cormac McCarthy”.

Alam mora no Brooklyn, em Nova York, com seu marido, David Land, fotógrafo, e seus dois filhos adotivos.

The Observer: Muitos críticos chamaram seu livro de “presciente”, já que ele foi escrito antes da pandemia. Qual é a sua opinião sobre isso?
Rumaan Alam: Até fevereiro de 2020, eu nunca tinha ouvido a palavra “­Coronavírus”. Em um resumo muito básico da trama, posso dizer que o livro dramatiza o fato de se estar preso em casa e não ter informações suficiente sobre o que se passa. Aconteceu de o romance ser publicado durante um momento no qual muitos leitores sentiam estar presos em suas casas e não ter informações suficientes sobre a realidade. Então é, de fato, uma ressonância estranha. Ao mesmo tempo, acho que meu livro está ligado a outros que falam sobre algumas dessas mesmas coisas: a relação individual com a ansiedade a respeito do clima, o absurdo do momento contemporâneo e nossa relação distorcida com a tecnologia. As pessoas estão pensando e falando sobre essas coisas, então faz sentido que haja livros sobre isso.

Racismo. “Uma pessoa branca de classe média, nos EUA, foi treinada durante toda a vida para suspeitar da negritude”, afirma o escritor, morador do Brooklyn – Imagem: David A. Land

TO: Seus personagens são dolorosamente conscientes de que estão mal equipados para lidar com o colapso social. Como você se sairia em uma situação assim?
RA: Acho que nada bem. Eu, por exemplo, não consigo fazer um percurso longo de carro sem GPS. Eu cozinho muito, mas há certos componentes básicos das receitas que esqueço constantemente e tenho de consultar. Eu me treinei para depender desse cérebro auxiliar que carrego no bolso, como todos nós.

TO: Há um abismo entre o que seus personagens pensam e o que eles dizem em voz alta, principalmente quando se trata de racismo – como vemos na cena em que Amanda, que é branca, reage à chegada imprevista em sua casa de férias alugada, dos proprietários negros, GH e Ruth. Como foi escrever isso?
RA: Quando os personagens se conhecem, o registro é próximo da sátira e permite que se vá um pouco mais longe e diga coisas desagradáveis. Ao mesmo tempo, espero que haja algo identificável aí. Uma pessoa branca de classe média, nos Estados Unidos, foi treinada durante toda a vida, por todos os produtos culturais que consumiu, para suspeitar da negritude e, particularmente, da masculinidade negra. Os medos de Amanda, conforme ela os articula, não são totalmente irracionais. Qualquer pessoa que recebesse um estranho batendo em sua porta tarde da noite provavelmente pensaria em seus filhos que dormem no fim do corredor. Ela está errada (sobre GH e ­Ruth), é claro, mas o leitor talvez não seja esclarecido a respeito disso durante duas páginas. Minha esperança é de que, nessas duas páginas, haja um leitor que tenha a mesma reação e que esteja disposto a pensar sobre isso. É preciso trabalho para desfazer esse pensamento. E a cultura é significativamente mais poderosa do que qualquer indivíduo. Portanto, é difícil dizer até que ponto essa mudança será possível. Acho que estamos num momento de ajuste de contas com essa realidade.

TO: Você parece realmente gostar de descrever os detalhes materiais da vida dessas pessoas – a comida orgânica cara, a decoração interior de última geração. Mas, à medida que a situação piora, esses bens de luxo se tornam não apenas ridículos, como também perturbadores. Compramos essas coisas imaginando que elas nos isolarão do mundo, mas, na hora H, isso não acontece.
RA: Sim, acho que está absolutamente certo. Veja, sou uma pessoa de classe média que mora na cidade de Nova York. As pessoas de quem estou falando são a pessoa que eu mesmo sou. No dia em que o confinamento da pandemia começou, qual foi a primeira coisa que fizemos? Além das compras de supermercado, todo mundo que conheço, inclusive eu, foi comprar outras coisas: um tapete de ginástica, um anel luminoso para o Zoom, talvez uma batedeira, porque você vai experimentar fazer bolos, e assim por diante. É muito revelador que a nossa reação cultural a um momento de crise tenha sido ir às compras e tornar ­Jeff Bezos (o chefe da Amazon) ainda mais rico do que já era.

O MUNDO DEPOIS DE NÓS. Rumaan Alam. Tradução: Alberto Flaksman. Intrínseca (288 págs., 49,90 reais) – Compre na Amazon

TO: Que livros estão na sua mesa de cabeceira?
RA: No momento, estou lendo O ­Teatro de Sabbath, de Philip Roth. É ótimo – a linguagem é muito viva e maliciosamente engraçada. Ontem à noite terminei ­Something New Under the Sun (Algo Novo Sob o Sol), de Alexandra Kleeman. É muito engraçado e extremamente perturbador.

TO: Qual foi o último livro realmente ótimo que você leu?
RA: Visitors (Visitantes), de Anita ­Brookner (1928-2016). Estou demorando para terminar de ler sua obra, porque a adoro e não quero ficar sem um livro dela pela frente. Eu não podia acreditar em quanto esse livro era bom – como seus outros romances e, ainda assim, diferente. Ela foi uma escritora incrível. ­Hermione Lee está escrevendo uma biografia dela, e estou muito animado com isso.

TO: Quais escritores de ficção que trabalham hoje você mais admira?
RA: Acho que Lorrie Moore é uma de nossas grandes escritoras em inglês. Louise Erdrich, que acaba de ganhar o Prêmio Pulitzer, é um gênio absoluto. O escritor de quem eu mais gostaria de receber um novo romance é Norman Rush, que, provavelmente, já está bastante velho neste momento e tem um corpo de trabalho enxuto, mas espero que, sobre sua mesa de trabalho, haja seis outros romances que sairão algum dia.

TO: No que você está trabalhando atualmente?
RA: Estou escrevendo um conto muito longo e trabalhando num livro. Em breve, chegarão e não terei mais de fingir ser professor do ensino fundamental. Estarei livre para deixar meus filhos correrem como loucos lá fora e dedicar parte do meu dia a avançar no livro. Este é o meu plano. •

Tradução: Luiz Roberto Mendes Gonçalves.


THRILLER ESTRELADO

Julia Roberts está à frente do elenco da produção da Netflix

por Ana Paula Sousa

Entre os 17 produtores creditados em O Mundo Depois de Nós estão Barack e Michelle Obama, fãs declarados do romance de Rumaan Alam no qual o filme se baseia. Parte do interesse dos Obama deve-se, certamente, à forma como os personagens negros são tratados e retratados. A história, além de tocar no racismo, olha para o domínio tecnológico com suspeição e gravidade.

Projeto ambicioso da Netflix, lançado como a grande estreia da plataforma neste fim de ano, o thriller dirigido por Sam Esmail (Mr. Robot) é, a um só tempo, superficial e eficaz.

A eficácia vem, sobretudo, da qualidade do livro de Alam e do elenco estelar, que tem à frente Julia Roberts, Ethan Hawke e Mahershala Ali. A superficialidade reside, sobretudo, na construção dos personagens – que, ao fim, parecem todos mais banais do que a parte inicial do filme prenuncia.

Trata-se, de toda forma, de uma trama envolvente que, à moda M. Night Shyamalan, procura criar um clima de suspense a partir do entrelaçamento entre o ambiente e as ações dos personagens.

A luxuosa casa de praia localizada em Long Island se tornará, aqui, o cenário ideal para o desenvolvimento das relações entre duas famílias desconhecidas que, num momento apocalíptico, são obrigadas a conviver – sem as telas a intermediar as trocas ou acomodar sentimentos.

Publicado na edição n° 1290 de CartaCapital, em 20 de dezembro de 2023.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘O apocalíptico agora’

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