Mundo
Alvo nas costas
Os moradores de Khan Younis, novo objetivo militar do exército israelense na Faixa de Gaza, sentem o cheiro da morte


Para Almaza Owda, em Khan Younis, a segunda cidade de Gaza, hoje sitiada, os pensamentos giram sobre a forma como ela poderá morrer. Na noite da quinta-feira 7, quatro dias após o ataque das Forças de Defesa de Israel à cidade no sul da Faixa, Owda, que vive numa tenda no terreno de uma escola da ONU transformada em abrigo, descreveu seus sentimentos. “Fico me perguntando: como vou morrer?”, postou nas redes sociais. “É possível que um estilhaço me atinja na cabeça e eu morra imediatamente? Talvez entre na tenda enquanto durmo, penetre no meu corpo e eu morra de sangramento? O que pode acontecer? Existem mil cenários na minha cabeça agora.”
Nos dias desde o rompimento do acordo de cessar-fogo para troca de reféns, em 1° de dezembro, e o início da terceira fase da ofensiva israelense, a guerra varreu Khan Younis e as cidades vizinhas. Tudo começou na segunda-feira 4, quando uma divisão israelita lançou o ataque a partir do leste e do norte, cercando e depois entrando na cidade. Embora dezenas de milhares de palestinos tenham sido deslocados mais para o sul, em direção a Rafah, alguns pela segunda e terceira vez na guerra, os moradores presos no interior de Khan Younis descreveram condições desesperadas numa cidade que já foi o lar de 400 mil pessoas.
Com vários bairros reduzidos a escombros pelos bombardeios, mesmo antes da nova ofensiva, e com pouco combustível disponível, alguns residentes começaram a usar carroças puxadas por burros para atravessar as ruínas. Sem ajuda externa, os abrigados pela ONU em Khan Younis lutam por comida, disse Nawraz Abu Libdeh. “A guerra da fome começou”, disse. “Esta é a pior de todas as guerras.”
A violência dos ataques tem sido sombriamente familiar para quem fugiu do norte, à medida que os militares israelenses desencadeavam “cinturões de fogo”, barragens intensas de explosivos usados contra áreas urbanas, antes de seguirem com tanques, infantaria e forças especiais. Vídeos divulgados por militares mostraram comandos e tropas a mover-se pela cidade em meio ao ruído de tiros, tomando posições atrás de um barranco, enquanto outros dentro de uma casa disparavam pela janela.
A importância de Khan Younis para Israel foi destacada em declarações dos comandantes mais graduados e por políticos, incluindo o primeiro-ministro, Benjamin Netanyahu. Limitada a leste por áreas rurais com pequenas aldeias esparsas que sobem suavemente até a cerca de Gaza e pelos kibutzim israelenses mais além, Khan Younis e suas cidades-satélites, Bani Suheila e Abasan al-Kabira, entre outras, se espalham por uma área urbana muito maior que a Cidade de Gaza. A oeste fica o mar e outra área de periferia rural, para onde os civis foram instados a fugir.
Cidade socialmente conservadora, Khan Younis, mesmo antes das guerras que engolfaram Gaza desde 2008, foi durante muito tempo considerada um reduto de apoio político ao Hamas. E depois de semanas insistindo que o principal centro de comando do grupo estava na Cidade de Gaza, localizado sob o hospital Dar al-Shifa, Khan Younis, com o seu campo de refugiados que foi a casa de infância do principal líder do Hamas em Gaza, Yahya Sinwar, e do chefe militar do grupo, Mohammed Deif, é agora retratado como o centro do Hamas e onde sua liderança se esconde.
“A guerra da fome começou”, disse Nawraz Abu Libdeh, refugiado em um abrigo da ONU
Autoridades israelenses descrevem uma rede semelhante de túneis em Khan Younis como no norte, alguns até Rafah, no extremo sul, na fronteira com o Egito. As afirmações parecem ter sido confirmadas por alguns reféns libertados que foram levados para “uma teia de aranha” de túneis que se estendem por quilômetros na área. É também em Khan Younis que, segundo sugerem, são mantidos muitos dos restantes 138 reféns capturados pelo Hamas em 7 de outubro, durante o massacre sangrento no sul de Israel.
Embora os militares israelenses tenham dado muita importância à forma como seus tanques avançaram até a casa de Sinwar, trata-se de uma afirmação essencialmente sem sentido, com Sinwar escondido em outro local. Ecoando rumores anteriores infundados de que o líder dos ataques tinha sido encurralado num bunker no início da guerra, Netanyahu afirmou que ele estava na sua mira. “Agora eles estão cercando a casa de Sinwar”, disse Netanyahu. “Portanto, a casa dele não é a sua fortaleza e ele pode escapar, mas é apenas uma questão de tempo até que o peguemos.” Outras autoridades israelenses, entretanto, ofereceram uma avaliação mais realista. Sinwar “não está na superfície. Ele está na clandestinidade”, disse o porta-voz militar, almirante Daniel Hagari, alguns dias após o início dos combates.
A natureza dos combates em ambientes urbanos densos, como Khan Younis e também nas áreas de Shuja’iya e Jabaliya, no norte, foi enfatizada pelos relatos constantes sobre israelenses mortos em combate, quando as tropas tiveram de adotar táticas militares de casa em casa contra os quatro batalhões do Hamas na cidade. Do lado palestino, as pesadas perdas continuaram, com o principal hospital Nasser a receber os corpos de 62 mortos e mais 99 feridos apenas entre sábado e domingo.
Em um novo ponto nos combates, as autoridades israelenses relataram que em Khan Younis tinham visto pela primeira vez mulheres combatentes do Hamas, inclusive atuando como vigias, afirmação que não pôde ser verificada. Embora as tropas tenham avançado depressa no ataque inicial à cidade, alcançando rapidamente partes do centro, o ímpeto abrandou. De acordo com reportagens recentes, apesar da insistência pública de algumas autoridades dos Estados Unidos de que não existe um cronograma para Israel terminar o conflito, nos bastidores há divergências reais em torno do calendário para o fim das principais hostilidades. As autoridades israelenses acreditam que só no fim de janeiro poderão concluir as operações de combate em grande escala, enquanto os EUA pressionam para os combates intensos terminarem até o fim de dezembro. “Não demos um prazo firme a Israel, não é realmente o nosso papel”, disse Jon Finer, vice-assessor de Segurança Nacional norte-americano, num fórum um dia antes do veto de Washington a novos pedidos de cessar-fogo no Conselho de Segurança da ONU na sexta-feira 8. “Dito isto, temos influência, mesmo que não tenhamos o controle sobre o que acontece no terreno em Gaza.”
O que isso significa para aqueles que ainda estão na cidade são mais semanas de conflito. “Foi uma noite de fortes tiros e bombardeios”, disse Taha Abdel-Rahman, morador de Khan Younis. “Como todas as noites.” •
Tradução: Luiz Roberto Mendes Gonçalves.
Publicado na edição n° 1290 de CartaCapital, em 20 de dezembro de 2023.
Apoie o jornalismo que chama as coisas pelo nome
Muita gente esqueceu o que escreveu, disse ou defendeu. Nós não. O compromisso de CartaCapital com os princípios do bom jornalismo permanece o mesmo.
O combate à desigualdade nos importa. A denúncia das injustiças importa. Importa uma democracia digna do nome. Importa o apego à verdade factual e a honestidade.
Estamos aqui, há 30 anos, porque nos importamos. Como nossos fiéis leitores, CartaCapital segue atenta.
Se o bom jornalismo também importa para você, nos ajude a seguir lutando. Assine a edição semanal de CartaCapital ou contribua com o quanto puder.