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Medo, cabo eleitoral

A associação entre migração e criminalidade garante a vitória da extrema-direita na Holanda

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Wilders, o “Trump holandês” – Imagem: John Thys/AFP
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Num shopping center em ­Volendam, um porto de pesca ao norte de ­Amsterdã, na sexta-feira 24, muitos frequentadores estavam felizes pelo fato de o extremista de direita Geert Wilders ter dominado as eleições holandesas. “Isso é ótimo”, disse Pieter, que não quis dar seu sobrenome. “Faltam moradias e os migrantes continuam a chegar. As fronteiras têm de fechar.” Na bonita Volendam, há muito um reduto de Wilders, o Partido para a Liberdade (PVV, na sigla em holandês) recebeu 42,9% dos votos, aumento de 18,6 pontos porcentuais em relação a 2021. Políticos, cientistas políticos e o próprio Wilders ficaram atônitos quando as primeiras previsões sugeriram a conquista de 37 assentos, cerca de um quarto do Parlamento e a maior porcentagem histórica.

Esse político loiro, às vezes chamado de “o Trump holandês” e conhecido por seus comentários inflamados sobre o Islã, pelos antecedentes criminais por insultos a marroquinos holandeses e por ter sua entrada recusada na Grã-Bretanha, chocou o país. De acordo com resultados provisórios, o deputado veterano, que vive com segurança pessoal 24 horas por dia após receber ameaças de morte, surfa numa onda de preocupação com a imigração, a habitação, o custo de vida e a desconfiança nos governos após uma série de escândalos.

Em um café próximo, Arjen, 57 anos, disse: “É um voto contra a ordem estabelecida. Eles bagunçaram as coisas”. Na mesa ao lado, o proprietário de uma pousada, Vincent Veerman, 55 anos, disse que havia votado em partidos de direita convencionais, mas agora queria um governo que reprima a imigração de “oportunistas”. Ele aprovou a “suspensão de asilo” do PVV, citando preocupações sobre a criminalidade desde que 160 requerentes de asilo foram alojados no hotel Van der Valk local. “O motivo pelo qual votei no PVV é simplesmente para que o governo não apoie Frans Timmermans.” Timmermans é o líder do segundo maior partido do país, o conjunto Esquerda Verde/Trabalhistas.

Os Países Baixos são conhecidos pela baixa corrupção, pela liberdade de imprensa e pela moderação, mas nas últimas duas décadas outra corrente esteve presente: o apoio aos partidos de extrema-direita. O anti-islâmico Pim Fortuyn, assassinado pouco antes das eleições de 2002, criou um partido homônimo que conquistou 26 assentos e participou do governo antes de desmoronar. O Fórum para a Democracia, de extrema-direita, teve um bom desempenho nas eleições provinciais e tornou-se o maior partido no Senado em 2019, antes de ter destino semelhante. De acordo com o professor Tom Louwerse, do Instituto de Ciência Política da Universidade de Leiden, a extrema-direita holandesa obteve, em média, de 15% a 20% dos votos na última década.

Há uma sensação de que nem todos nos Países Baixos têm as mesmas oportunidades, especialmente entre aqueles que tiveram menos sucesso no sistema de ensino secundário, altamente seletivo. O jornalista Joris Luyendijk identificou recentemente “sete pontos”, entre eles melhor educação, ser de raça branca e filho de holandeses, que aceleram o progresso de alguém numa sociedade supostamente não hierárquica. O professor Marcel Lubbers, cientista social da Universidade de Utrecht, concorda: “Entre os eleitores de origem imigrante, a grande maioria sente que seus interesses não estão bem representados na política, mas também vemos isso entre um grupo muito grande sem origem imigrante, que vota em partidos anti-imigração”.

O professor Matthijs Rooduijn, da Universidade de Amsterdã, diz que vê as eleições como um “terreno fértil para o populismo de direita”. Muitos partidos fizeram campanha sobre a imigração, jogando a favor de Wilders, que liga os migrantes ao crime e aos problemas habitacionais. A pesquisa de Rooduijn sugere que 15% dos votos do PVV vieram daqueles que abandonaram o Partido Popular para a Liberdade e a Democracia (VVD), do primeiro-ministro Mark Rutte.

Não está claro se Geert Wilders conseguirá montar uma aliança para governar o país

No início da campanha, a nova líder do VVD, Dilan Yeşilgöz-Zegerius, abriu a porta a Wilders, dizendo que não o excluiria de uma coligação, como a maioria dos partidos tradicionais tinha feito, dissuadidos pelo seu extremismo. ­Wilders respondeu aparentemente adotando um tom mais suave. No programa de tevê Nieuwsuur, ele disse que poderia colocar no gelo seu programa político sobre a proibição de mesquitas, escolas islâmicas e o Alcorão. “A prioridade está em outras coisas, tratando-se do próximo perío­do de governo”, afirmou, suavemente.

Isto claramente teve apelo. No lançamento de sua campanha na cidade de Venlo, no sul do país, os eleitores disseram que gostaram da sua mensagem nativista, mas que por vezes acharam que ele foi um pouco longe demais. Cinco semanas depois, aqui em Volendam, ­Veerman disse que Wilders adotara um tom mais moderado do que os “extremistas de esquerda” em relação ao clima. “Não me importa qual é a sua crença – católica, protestante, islâmica –, desde que você respeite todas as outras”, afirmou. “Temos uma sociedade multicultural.”

Embora Wilders seja extremamente de direita em termos de imigração, ele tem políticas populistas para saúde, aposentadorias, salário mínimo e habitação social. “O eleitorado do PVV em geral é composto de pessoas que passam por mais dificuldades”, disse Rooduijn. “Elas se sentem negligenciadas. Têm vidas difíceis, economicamente, mas também culturalmente. E essa é uma das razões pelas quais votam num partido que promete mudanças radicais.”

Mas será que essa mudança radical acontecerá? Wilders foi o que conquistou o maior número de assentos e foi convidado a tentar formar uma coalizão. Mas na democracia representativa holandesa o resultado da negociação está longe de ser óbvio. Ele pode não acabar como primeiro-ministro e, se não conseguir construir uma coligação, outro partido poderá tentar. Isso pode levar meses. A opção mais óbvia seria uma coligação de direita entre PVV, VVD, Novo Contrato Social, de Pieter Omtzigt, e Movimento Cidadão Agricultor (BBB). Mas ­Yeşilgöz-Zegerius disse que não fará parte do governo ­Wilders, embora possa apoiar algumas políticas. Omtzigt, de centro-direita, anteriormente descartava trabalhar com pontos de vista “anticonstitucionais”, mas agora fala vagamente em “assumir responsabilidades”.

O programa de Wilders, que tem metade da extensão dos pontos do VVD, do NSC e do Esquerda Verde/Trabalhistas, não teve, porém, custos oficiais e contém uma profunda ironia. Os economistas do ING, ­Marcel Klok e Marieke Blom, analisaram uma potencial coligação ­Wilders-NSC-BBB apoiada por ­Yeşilgöz-Zegerius. Descobriram que o impacto na economia seria estimulante: “Dadas as atuais tensões no mercado de trabalho, prevemos que isto resultaria maior demanda por trabalhadores estrangeiros”. •


Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves.

Publicado na edição n° 1288 de CartaCapital, em 06 de dezembro de 2023.

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