Mundo
“Terroristas” de jaleco?
O exército israelense não consegue explicar a razão dos ataques a hospitais em Gaza


Nas primeiras horas da manhã do sábado 18, sobre pilhas de concreto e entulho, um grande número de médicos e pacientes caminhou quilômetros pelas ruas destruídas da Cidade de Gaza, forçado a abandonar a pé as ruínas dos hospitais. Médicos temiam deixar para trás pacientes gravemente doentes, numa cidade praticamente reduzida a escombros e tomada pelas forças israelenses, cujos hospitais funcionavam sem energia, combustível, água ou alimentos. “É basicamente o inferno na terra”, disse William Schomburg, chefe do Comitê Internacional da Cruz Vermelha, descrevendo o que restava de vida na cidade.
Durante semanas, dezenas de milhares de palestinos acreditaram que se refugiar nos hospitais fosse o mais próximo da segurança, enquanto o enclave sofria bombardeios cada vez mais intensos. Mas, à medida que as forças israelenses se aproximaram dos edifícios e depois atacaram o maior hospital da cidade, Dar al-Shifa, milhares foram deslocados juntamente com profissionais médicos, caminhando pelas ruas destruídas para o sul do enclave. Segundo o Ministério da Saúde palestino, as forças israelenses exigiram a evacuação do hospital Al-Shifa na manhã de sábado, três dias após um ataque às instalações. Os médicos disseram ter sido informados de que havia hora marcada para evacuar o local, peça principal do sistema médico de Gaza.
Ao menos 12 mil civis foram assassinados no ataque israelense a Gaza desde o ataque do Hamas em 7 de outubro, no qual 1,2 mil israelenses foram mortos e cerca de 240 feitos reféns.
Faltam provas de que o Hamas usava instalações médicas
Medhat Abbas, diretor-geral do Ministério da Saúde palestino em Gaza, lembrou uma conversa com o ortopedista Adnan Al Borsh, que deixou o Al-Shifa nas primeiras horas de sábado. Al Borsh, conta, chorou ao descrever a experiência de sair com outros médicos e pacientes desalojados. Soldados israelenses patrulhavam o complexo, com franco-atiradores posicionados no entorno. “Podíamos ouvir os feridos. Não pudemos ajudá-los. Havia gente a morrer”, descreveu Al Borsh. “Fomos obrigados a caminhar. Ao sair do Al-Shifa, vimos corpos nas ruas. O hospital estava destruído, sem água, sem oxigênio, sem remédios, e ataques a todos os edifícios do complexo.” Abbas compartilhou imagens gravadas por Hamdan Dahdouh, cinegrafista da TV Al Jazeera, na sala de emergência do hospital Al-Shifa, logo após a ordem de evacuação. Estava repleta de civis em pânico, alguns a gritar, enquanto tentavam avaliar quem poderiam evacuar. Dezenas de feridos jaziam esparramados no chão de ladrilhos manchados de sangue, alguns colocados em macas. Havia duas crianças sentadas no chão, enquanto um homem tentava limpar seus ferimentos.
De acordo com o Ministério da Saúde, 530 pacientes foram forçados a sair em companhia dos médicos, enquanto cinco profissionais concordaram em ficar com 120 feridos mais graves. Trinta dos 39 bebês prematuros evacuados da ala neonatal no domingo passado sobreviviam há uma semana fora das incubadoras, alinhados para se aquecerem numa das salas de cirurgia do Al-Shifa. A equipe médica disse tentar encontrar maneira de remover os bebês em cooperação com o Comitê Internacional da Cruz Vermelha. “Muitos pacientes não podem sair do hospital porque estão nos leitos de UTI ou nas incubadoras de bebês”, postou o cirurgião Ahmed Al Mokhallalati na plataforma X. “Eu e outros cinco médicos ficaremos no hospital Al-Shifa com 120 pacientes que não podem sair, devido às suas condições de saúde.”
Um porta-voz das Forças de Defesa de Israel negou que tenham ordenado a evacuação. Em vez disso, disseram que “o diretor do hospital Al-Shifa solicitou que as forças ajudassem a garantir uma rota de saída do hospital. Os soldados, portanto, concordaram e ajudaram nos esforços de evacuação. Em nenhum momento as tropas ordenaram a remoção de pacientes ou equipes médicas e, na verdade, propuseram que qualquer pedido de remoção fosse facilitado”.
Sem trégua. A negociação para a libertação dos reféns israelenses prossegue, em meio às operações militares e à destruição contínua da Faixa de Gaza – Imagem: Fadel Senna/AFP e Jaafar Ashtiye/AFP
O ataque ao Al-Shifa, o maior complexo médico de Gaza, começou horas antes do amanhecer de quarta-feira 15, quando tanques israelenses entraram no local. Durante mais de 12 horas, comandos percorreram o pronto-atendimento e a ala cirúrgica. De acordo com testemunhas que falaram à BBC e à Al Jazeera, as forças israelenses usaram alto-falantes para exigir que todos os homens entre 16 e 40 anos entrassem no pátio, antes de revistarem muitos e detê-los em local desconhecido. Os médicos relataram mais tarde que as forças israelenses colocaram scanners de reconhecimento facial nas saídas.
O Al-Shifa não é o único hospital na Cidade de Gaza forçado a evacuar. No hospital Al-Quds, ambulâncias operadas pelo Serviço do Crescente Vermelho Palestino conseguiram retirar alguns pacientes e funcionários, depois de inicialmente terem voltado, devido aos intensos bombardeios em torno do hospital. O serviço distribuiu imagens na quinta-feira 16, de alguns dos 14 mil palestinos abrigados ali, passando por edifícios bombardeados e escalando pilhas de escombros, enquanto caminharam cerca de 11 quilômetros, alguns empurrando um homem aparentemente inconsciente numa cama de hospital pelas ruas destruídas.
No hospital Al-Ahli Arab, no leste da Cidade de Gaza, a única instituição capaz de receber novos pacientes nos dias recentes, os médicos disseram que antes realizavam apenas cirurgias para salvar vidas, mas se tornaram incapazes de operar, até que muitos foram forçados a partir. “Como o Al-Shifa foi cercado e efetivamente destruído como hospital, todos os feridos estavam indo para o Al-Ahli”, disse o cirurgião Ghassan Abu-Sittah, que deixou o hospital de Shifa e foi para o Al-Ahli. “No período de seis dias até as primeiras horas da manhã de quinta-feira, recebemos mais de 500 feridos e estávamos operando a todo vapor. Às vezes, certamente na última noite, durante 20 horas seguidas. Nas primeiras horas da manhã de quinta, terminamos o último caso e fomos informados de que isso significava o fim da anestesia e que as salas de cirurgia já não tinham capacidade para realizar qualquer tipo de intervenção.” Abu-Sittah acrescenta: “Tomamos a decisão de evacuar o hospital na quinta de manhã, pelo menos as salas de cirurgia, e manter o resto do hospital como posto de primeiros-socorros, uma vez que já não podíamos operar os pacientes”.
Aseel Baidoun, da Assistência Médica aos Palestinos, disse: “É um colapso total do sistema de saúde”, apontando para uma crise agravada pelo encerramento periódico das duas companhias telefônicas palestinas que operam em Gaza, devido à falta de combustível, levando a repetidos apagões nas comunicações. “As ambulâncias não conseguem se comunicar com os hospitais, e os cidadãos não podem chamar ambulâncias”, disse. “Conheço gente que caminhou quilômetros até um hospital apenas para contar à equipe médica a localização de um bombardeio.”
As autoridades israelenses há muito afirmam que o Hamas opera embaixo de instalações médicas, incluindo um centro de comando em bunkers sob o hospital Al-Shifa. Tanto o pessoal do Hamas quanto o do Al-Shifa negaram. Observadores notaram que os ataques aos hospitais produziram algumas provas da atividade do Hamas, mas não conseguiram demonstrar que o Al-Shifa era usado como centro de comando. A BBC também questionou se as armas foram removidas antes de seus jornalistas entrarem para filmar no Al-Shifa.
O ataque a hospitais aprofunda o drama dos palestinos, crianças em especial
As forças israelenses divulgaram imagens de um porta-voz a perambular pelo departamento de ressonância magnética do Al-Shifa, horas após o ataque, puxando o que ele chamou de “sacos” de roupas militares e armas de trás de uma máquina e mostrando fotos de rifles automáticos, granadas, livros, uniformes e uma grande caixa de tâmaras que reuniram numa sala. Mais tarde, os militares divulgaram imagens da abertura de um túnel que, segundo eles, passava por baixo do hospital, bem como imagens de um conjunto de armas automáticas e roupas militares que, segundo disseram, foram encontradas num carro no complexo hospitalar. Eles também divulgaram imagens de quatro rifles automáticos, munições e equipamentos como facas e walkie-talkies que disseram ter sido descobertos no hospital Al-Quds.
“Eles estão juntando peças diferentes, mas essa não é a prova definitiva”, disse Mairav Zonszein, do Grupo de Crise Internacional. “É muito difícil compreender o que as forças israelenses estão fazendo, por que ampliaram tanto a questão do Al-Shifa e depois saíram basicamente sem nada convincente. Acho que é muito difícil para qualquer um entender isso e, no nível básico de relações públicas, é simplesmente um desastre”, disse ela.
Enquanto milhares eram forçados a fugir a pé dos hospitais de Gaza, equipes da SCVP imploravam por ajuda externa para suas equipes médicas de emergência deixadas para trás, que disseram estar “sitiadas” no hospital Al-Ahli “em meio a pesados bombardeios e tiros de soldados israelitas”, com tanques israelenses nas proximidades. Segundo Abu-Sittah, quando ele e outros médicos conseguiram deixar o Al-Ahli, caminhando para o sul durante cinco horas na quinta-feira, ouviram tanques e metralhadoras israelenses. Após a evacuação do Al-Shifa, restaram apenas cinco médicos para cuidar de 30 bebês prematuros e dezenas de pacientes gravemente enfermos, entre as ruínas desertas da Cidade de Gaza. •
Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves.
Pausa insuficiente
Israel e o Hamas chegam a um acordo provisório de cessar-fogo
Para inglês ver. Netanyahu cede quatro dias – Imagem: Gabinete do Primeiro Ministro/Israel
Na quinta-feira 23, às 10 da manhã, teve início uma trégua de quatro dias no massacre levado a cabo pelas forças armadas israelenses na Faixa de Gaza. O governo de Benjamin Netanyahu aprovou os termos do acordo provisório com o Hamas mediado pelo Catar em troca da libertação de 50 dos mais de 240 reféns em poder do grupo palestino. Todos são mulheres e crianças. Um dia antes da pausa, os ataques de Israel nas cercanias de hospitais e campos de refugiados deixou um saldo de outras cem vítimas.
Há outros termos importantes do trato: haverá um dia de pausa a cada dez reféns adicionais libertados, 150 palestinos, entre mulheres e menores de 19 anos, serão liberados das prisões israelitas, a ajuda humanitária se estenderá a todas as áreas de Gaza, a vigilância aérea está interrompida ao sul e suspensa por seis horas diárias ao norte do enclave durante o período de trégua e o exército israelense se compromete a não atacar ou prender ninguém na região.
Organizações de direitos humanos consideram, claro, a pausa insuficiente para amenizar a tragédia humanitária. Apesar do acordo, um primeiro passo, a animosidade continua em alta. Segundo Netanyahu, a “guerra” contra o Hamas continuará depois da breve pausa no conflito. Em comunicado, o grupo palestino afirmou que vai permanecer alerta. “Após negociações complexas e difíceis durante dias, chegamos a um acerto para um cessar-fogo de ambos os lados, a interrupção das ações militares do exército de ocupação em todas as áreas da Faixa de Gaza. (…) Mas as nossas mãos continuarão no gatilho e os nossos batalhões vitoriosos permanecerão atentos para defender o nosso povo e derrotar a ocupação.”
Durante sermão dirigido aos fiéis na Praça de São Pedro, em Roma, o papa Francisco voltou a criticar de forma contundente o conflito. “Ambos os lados sofrem. Isto é o que as guerras fazem, mas aqui fomos além das guerras. Isto não é guerra, é terrorismo.” O pontífice aconselhou: “Não sigam em frente com paixões que, no fim, matam a todos”.
Publicado na edição n° 1287 de CartaCapital, em 29 de novembro de 2023.
Apoie o jornalismo que chama as coisas pelo nome
Depois de anos bicudos, voltamos a um Brasil minimamente normal. Este novo normal, contudo, segue repleto de incertezas. A ameaça bolsonarista persiste e os apetites do mercado e do Congresso continuam a pressionar o governo. Lá fora, o avanço global da extrema-direita e a brutalidade em Gaza e na Ucrânia arriscam implodir os frágeis alicerces da governança mundial.
CartaCapital não tem o apoio de bancos e fundações. Sobrevive, unicamente, da venda de anúncios e projetos e das contribuições de seus leitores. E seu apoio, leitor, é cada vez mais fundamental.
Não deixe a Carta parar. Se você valoriza o bom jornalismo, nos ajude a seguir lutando. Assine a edição semanal da revista ou contribua com o quanto puder.