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Um poema para os fins de mundo

As periferias brasileiras e a vida íntima de seus moradores são as protagonistas do pungente romance ‘O Céu Para os Bastardos’

Um poema para os fins de mundo
Um poema para os fins de mundo
Lilia Guerra, a autora, é também auxiliar de enfermagem – Imagem: Thaís Cristina
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Em O Céu Para os Bastardos, os ônibus e trens alinhavam a narrativa na mesma medida em que ditam o compasso da vida de quem mora a infindáveis horas do trabalho. Chama-se, inclusive, Fim-de-Mundo o lugar onde vive a narradora, nascida Maria Expedicionária e tornada Sá Narinha.

Empregada doméstica e conhecedora das plantas e de seus poderes curativos, Sá Narinha pega uns livros na biblioteca da casa da patroa e registra memórias e pensamentos em um caderno de capa vermelha. Observadora sutil dos ambientes, ela olha com delicadeza para seus vizinhos, mas carrega também um travo de amargura.

Sá Narinha começou a nascer para a escritora Lilia Guerra, que é também auxiliar de enfermagem, no livro Rua do Larguinho (2021). Outros dos personagens de O Céu Para os Bastardos habitavam os contos de Perifobia (2018).

A despeito da consistência das figuras desenhadas pela autora, não seria exato atribuir a alguma delas o protagonismo. O personagem central desse pungente livro é um lugar de “calçadas aleijadas” e “fios repletos de restos de rabiola”: o Fim-de-Mundo, feito à imagem e semelhança das tantas periferias que só quem nelas vive sente na pele o que realmente são.

E Lilia, moradora de Cidade Tiradentes, extremo leste da cidade de São Paulo, é uma dessas pessoas. Também por isso, como disse ela em entrevista à Folha de S.Paulo, o transporte público se faz tão presente em sua ficção.

O Céu Para os Bastardos. Lilia Guerra. Todavia (176 págs., 54,90 reais) – Compre na Amazon

“É uma contradição que ônibus tão compridos tenham só uma porta para desembarque (…) Tenho vontade de conhecer o engenheiro responsável pela proeza”, ironiza sua narradora, que reflete ainda sobre o custo da passagem, o medo dos assaltos e o sonho de um assento à janela. “É preciso sair de casa cada vez mais cedo. E voltamos cada vez mais tarde.”

Embora seja um livro repleto de personagens e paisagens que se ligam feito mosaico, O Céu Para os Bastardos tem também um conflito central, que, a certa altura, acompanhamos quase como suspense. No centro do conflito está Júlio ­César, filho de Sá Narinha, que nunca pôde ser batizado por ser o filho bastardo de um homem casado.

Enquanto acompanhamos a trama principal, vamos conhecendo Melquíades, com sua barraca dos cacarecos; Duca e Celso, casal unido pelo destino trincado e pelas drogas; e Tia Bê, com seu “chinelinho gasto, remendado de arame”.

Foi Cora Coralina quem disse: “faz da tua vida mesquinha um poe­ma”. Dona de uma escrita rica em descrições e sensorialidades – que ressoam um pouco a Cartola, Zeca Pagodinho e Noel Rosa –, Lilia fez, da sua vida e das vidas daqueles que cruzam seu cotidiano, um poema.

Publicado na edição n° 1286 de CartaCapital, em 22 de novembro de 2023.

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