Política

assine e leia

Fungos contra todos os males

O consumo de cogumelos medicinais avança, mas as propriedades atribuídas a eles carece de evidências

Fungos contra todos os males
Fungos contra todos os males
Cura ou engodo?. O mercado global de cogumelos funcionais deve crescer de 8 bilhões de dólares, em 2020, para pelo menos 19,3 bilhões de dólares, em 2030 – Imagem: iStockphoto e Redes sociais
Apoie Siga-nos no

A apresentadora Sheila Dillon, diagnosticada com câncer na medula óssea em 2011, contou, no The Food Program, na rádio BBC, que começou a tomar suplementos de cogumelos após ter descoberto que, no Japão, eles eram utilizados para atenuar os efeitos da radioterapia e da quimioterapia. Quando consultou seu oncologista, ela ouviu que “corria o risco de se tornar uma propagandista”.

Sheila Dillon disse não saber se havia ligação entre os suplementos e o sucesso do seu tratamento. Mas ela não é a única a aceitar a ideia de que os fungos têm potencial muito maior para tratar problemas de saúde do que admite a medicina ocidental convencional.

Estima-se que o mercado global de cogumelos funcionais crescerá de 8 bilhões de dólares, em 2020, para 19,3 bilhões de dólares, em 2030. A rede de lojas Holland & Barrett oferece 17 diferentes suplementos contendo fungos. “Nos últimos dois meses, vimos um aumento de 70% nas compras de produtos de cogumelos”, diz Rachel Chatterton, chefe de alimentos da empresa, “e não esperamos que o boom diminua tão cedo.”

O Bristol Fungarium vende extratos de fungos que, supostamente, aliviam a ansiedade, previnem a formação de rugas, estabilizam a pressão arterial e atenuam as ondas de calor da menopausa. De problemas cardíacos e diabetes tipo 2 a alergias e câncer, a lista de doenças que os cogumelos tratam é longa. Mas essas afirmações são apoiadas em evidências científicas? Ou os cogumelos medicinais são apenas a última moda?

“Precisamos de métodos científicos avançados para identificar os fungos úteis para aliviar ou tratar doenças”, diz um micologista

Em um antigo celeiro de grãos no norte de Somerset, na Grã-Bretanha, cabeças de reishi bulbosos, cor creme, erguem-se em hastes vermelho-escuras, ao lado de fileiras de jubas-de-leão gigantes, semelhantes a couves-flores, em prateleiras metálicas. Esta é a sala de cultivo do Bristol Fungarium. Na sala ao lado, sete funcionários trabalham para transformar fungos em tinturas e embalá-los para atender pedidos.

Lá fora, operários constroem uma segunda sala para duplicar a produção. No ano passado, as vendas totalizaram mais de 8 milhões de reais. Tom Baxter, que fundou a empresa em 2019, espera que esse valor dobre nos próximos 12 meses.

Cerca de metade da receita do Bristol Fungarium vem da juba-de-leão, que, segundo um folheto da empresa, é benéfica para pacientes com demência leve, tem potencial para aliviar a doença inflamatória intestinal e, supostamente, ajuda a controlar os sintomas de transtorno de déficit de atenção e hiperatividade. As evidências de testes em humanos que apoiam essas afirmações são escassas, embora tenha sido demonstrado que extratos de juba-de-leão estimulam o crescimento de células nervosas em roedores.

“O corpo humano é uma galáxia de trilhões de células que interagem entre si e com os micróbios do nosso microbioma”, diz o professor Nicholas Money, micologista da Universidade Miami, em Ohio, nos Estados Unidos, que publicou uma resenha sobre cogumelos medicinais em 2016. “Estudos preliminares de células em animais são um ponto de partida interessante, mas extrapolar os efeitos observados em células cultivadas para o tratamento de doenças graves é totalmente absurdo.”

Baxter reconhece que muitas afirmações feitas sobre cogumelos medicinais se baseiam em extrapolações de culturas de células. No entanto, ele destaca que dois ensaios clínicos com juba-de-leão apontaram melhora nos resultados de testes em adultos idosos com comprometimento cognitivo leve e benefícios para pessoas com Alzheimer leve. No primeiro ensaio, apenas 15 participantes tomaram os suplementos e, no segundo, 20. Ambos envolveram pesquisadores ligados a empresas que comercializam suplementos de cogumelos.

Muitas propriedades têm sido atribuídas ao reishi: que ele pode estimular o sistema imunológico e a saúde intestinal, aliviar a fadiga e melhorar o sono. Alguns pesquisadores também dizem que a cultura de células e estudos em animais sugere que ele pode promover a atividade anticancerígena do sistema imunológico.

“O reishi pode ativar as células assassinas naturais do corpo que podem atacar as células cancerígenas e aumentar a apoptose, ou morte celular programada, das células cancerígenas”, diz ­Giuseppe Venturella, botânico e micologista da Universidade de Palermo, na Itália.

Embora a maioria das pesquisas sobre o fungo tenha ocorrido em culturas de células, uma revisão identificou 26 testes de reishi em humanos, incluindo alguns que identificaram benefícios para pacientes com pressão alta, diabetes tipo 2, doenças cardíacas, hepatite B e câncer. Seu autor destacou que tais descobertas foram, com frequência, prejudicadas pelo fato de os participantes saberem estar recebendo o tratamento, pelo pequeno tamanho das amostras e pela falta de acompanhamento confirmatório.

Negócio. O Bristol Fungarium (acima) vende extratos curativos. O cientista Nicholas Money reconhece o potencial dos fungos, mas desconfia da nova onda – Imagem: iStockphoto e Universidade de Miami

Extratos do cogumelo cauda-de-peru têm sido usados em tratamentos convencionais contra o câncer desde as décadas de 1970 no Japão e 1980 na China. Um grupo especialista em avaliação de pesquisas da Universidade de Portsmouth revisou sete ensaios clínicos randomizados que examinaram se o polissacarídeo-K, um extrato de cauda-de-peru, reduziu os efeitos colaterais da radioterapia ou quimioterapia em pacientes com câncer colorretal.

O pequeno número de participantes no estudo, a falta de grupos de controle com placebo e a possibilidade de os pacientes reportarem efeitos secundários de forma diferente por saberem estar tomando PSK fizeram com que os benefícios não pudessem ser comprovados.

O cogumelo chaga, que cresce em bétulas e se assemelha a carvão queimado, previne rugas e combate infecções bacterianas, segundo quem o vende. Cordyceps, o “fungo zumbi” que inspirou a série da HBO The Last of Us, melhora o desempenho nos exercícios, atua como antidepressivo e aumenta a libido feminina. Em nenhum desses casos, há ensaios clínicos bem elaborados a sustentar tais alegações.

De acordo com as legislações de muitos dos países ocidentais, a rotulagem dos alimentos não pode atribuir a eles “a propriedade de prevenir, tratar ou curar uma doença humana”. Tais atributos se enquadram nas regulamentações sobre medicamentos e requerem autorização de comercialização – no caso do Brasil, da Agência Nacional de Vigilância Sanitária.

Enquanto os medicamentos são baseados em compostos purificados específicos que foram exaustivamente testados quanto à segurança e eficácia, os suplementos medicinais de cogumelos podem conter centenas de produtos químicos diferentes. Os níveis de compostos ativos também podem variar dependendo de uma série de fatores, incluindo a idade e o local do cultivo e de onde provêm os extratos – se dos corpos frutíferos dos cogumelos ou de seus micélios, semelhantes a raízes. Também é difícil saber que doses estão contidas nos produtos. Às vezes, as espécies de fungos anunciadas nos rótulos nem sequer estão nos produtos.

Embora a maioria dos efeitos benéficos dos cogumelos à saúde não seja endossada por ensaios de boa qualidade com humanos, mesmo os céticos reconhecem que a ausência de evidência não é evidência de ausência. Muitos medicamentos derivados de fungos – como os antibióticos penicilina e cefalosporinas, e a lovastatina, que reduz o colesterol – já estão em uso.

Money, autor do livro Molds, Mushrooms and Medicines (Bolores, Cogumelos e Medicamentos), diz que algumas propriedades atribuídas aos cogumelos não têm fundamento científico e “equivalem a pouco mais que óleo de cobra”. Mas pondera que os fungos têm relações químicas ricas com outros organismos e contêm muitos compostos úteis. “Precisamos de métodos científicos avançados para identificar aqueles que são genuinamente úteis para aliviar ou tratar doenças humanas”, conclui. •


Tradução: Luiz Roberto M. Gonçalves.

Publicado na edição n° 1286 de CartaCapital, em 22 de novembro de 2023.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Fungos contra todos os males’

ENTENDA MAIS SOBRE: , , , ,

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo

Apoie o jornalismo que chama as coisas pelo nome

Depois de anos bicudos, voltamos a um Brasil minimamente normal. Este novo normal, contudo, segue repleto de incertezas. A ameaça bolsonarista persiste e os apetites do mercado e do Congresso continuam a pressionar o governo. Lá fora, o avanço global da extrema-direita e a brutalidade em Gaza e na Ucrânia arriscam implodir os frágeis alicerces da governança mundial.

CartaCapital não tem o apoio de bancos e fundações. Sobrevive, unicamente, da venda de anúncios e projetos e das contribuições de seus leitores. E seu apoio, leitor, é cada vez mais fundamental.

Não deixe a Carta parar. Se você valoriza o bom jornalismo, nos ajude a seguir lutando. Assine a edição semanal da revista ou contribua com o quanto puder.

Leia também

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo