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Freio de arrumação

Restabelecido da cirurgia no quadril, Lula busca recuperar as rédeas da atuação política do governo

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O presidente Lula (PT) e o ministro da Fazenda, Fernando Haddad. Evaristo Sá/AFP e Diogo Zacarias/MF
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O presidente Lula completou 78 anos na sexta-feira 27 com sentimentos conflitantes. Os embates na Faixa de Gaza tiraram-lhe o ânimo de comemorar. Só os filhos foram ao Palácio da Alvorada naquela noite. Uma cirurgia no quadril quatro semanas antes o tinha deixado aliviado. Por 14 meses, convivera com dores insuportáveis. “Já não tinha mais paciência, eu chegava aqui de manhã já com o humor muito azedo”, comentou em um café com jornalistas naquele dia, no Palácio do Planalto. Antes de encontrar a mídia, havia examinado, com ministros palacianos e a presidente do PT, Gleisi Hoffmann, pesquisas sobre sua popularidade e a do governo. O retrato por trás dos números era preocupante. Os brasileiros dão sinais de apreensão com a economia e acreditam que Lula viaja muito ao exterior. A divisão política do País segue igual àquela da época da eleição. E o Congresso, bem, o Congresso é esse bunker retrógrado que está aí e causa mais dificuldades ao presidente do que ao antecessor, na avaliação popular. Além de chantageá-lo, como se verá adiante.

A pesquisa mais inquietante foi divulgada na quarta-feira 25, da ­Genial/Quaest. Embora a maioria aprove o trabalho de Lula (54%), 42% desaprovam, sendo essa a opinião de 9% dos eleitores do petista no segundo turno. Em agosto, a aprovação ganhava de 60% a 35%. A avaliação “positiva” do governo está em 38%, enquanto 29% têm visão “negativa” e 29%, “regular”. Em agosto, o índice positivo superava o negativo em 18 pontos, o dobro. Os números atuais assemelham-se àqueles da gestão de Jair Bolsonaro no período eleitoral (38% de positivo, conforme o Datafolha de então) e no seu último mês no poder (39%, idem). O que distingue o Lula de hoje e o Bolsonaro de ontem é que o capitão inspirava menos indiferença e mais bronca na parcela que desaprovava seu governo.

O presidente promete, no próximo ano, dedicar-se mais às viagens pelo Brasil

Para o cientista político Felipe Nunes, da Quaest, a popularidade de Lula e seu governo tem duas explicações. Uma é econômica. Mais gente vê o País no rumo errado (49%) do que no certo (43%). Há ainda um empate entre quem acha que a economia melhorou e piorou nos últimos 12 meses e uma diminuição do otimismo em relação aos próximos 12. O aumento recente de certas contas (luz, água, telefone), dos alimentos e dos combustíveis somado e um embrionário pessimismo com o futuro da inflação e do emprego pesam na percepção econômica dos brasileiros, afirma Nunes. A segunda explicação para a variação da popularidade está no noticiário. Em outubro, pela primeira vez no ano, um porcentual maior de entrevistados (36%) dizia ter ouvido mais notícias negativas do que positivas sobre o governo (para 34%, era o contrário).

Diante do cenário, Lula apresentou no café com jornalistas, do qual ­CartaCapital participou, uma reorientação do governo. “Ano que vem vai ser o ano inteiro de viagem pelos estados brasileiros”, disse, para inaugurar obras do novo PAC, moradias do Minha Casa Minha Vida, escolas, universidades. Será, registre-se, ano de eleições municipais, um termômetro do País e um ensaio para a disputa presidencial seguinte. Bolsonaro, que acaba de ser declarado mais uma vez inelegível por oito anos pelo Tribunal Superior Eleitoral, tem percorrido o Brasil. Valdemar Costa Neto, o chefe do partido do capitão, o PL, diz e repete que até a campanha de 2026 o Supremo Tribunal Federal devolverá o ex-presidente ao jogo eleitoral, como fez com Lula em 2021. Será?

Oposição. Bolsonaro continua inelegível, mas há quem sonhe com sua reabilitação. Campos Neto tem o poder sobre a taxa de juros – Imagem: Zack Stencil/Partido Liberal e Pedro França/Ag. Senado

Com Lula mergulhado nos estados, caberá a Geraldo Alckmin, o vice-presidente, e a Rui Costa, o chefe da Casa Civil, viajar ao exterior, a fim de “vender” o Brasil como porto seguro a investimentos na economia verde (geração de energia solar e eólica, por exemplo). Neste ano, Costa visitou oito estados, a Fiesp (indústria paulista), a Febraban (bancos) e diplomatas estrangeiros para apresentar o novo PAC.

Para garantir as inaugurações, o presidente decidiu outra reorientação no governo. Se não for possível zerar o ­déficit público em 2024, meta do orçamento proposto ao Congresso, tudo bem. Só será zero no caso de a arrecadação permitir, não com corte de gastos. Estes devem se limitar ao programado no orçamento, nada de ampliá-los, disse a líderes e dirigentes partidários em 31 de outubro. Foi o recado principal, no relato de uma testemunha. “Muitas vezes, o ‘mercado’ é ganancioso demais e fica cobrando uma meta que ele sabe que não vai ser cumprida (…) Nós dificilmente chegaremos à meta zero”, havia dito Lula no café com jornalistas. Sua postura havia despertado as críticas de sempre dos neoliberais e seus porta-vozes midiáticos. O ministro da Fazenda, Fernando Haddad, saiu chamuscado. É defensor de zerar o déficit, para conquistar a confiança do tal “mercado” e não dar pretexto ao Banco Central do (palavras de Gleisi Hoffmann) “bolsonarista” Roberto Campos Neto para reduzir ou interromper o corte (de novo Gleisi) da “criminosa taxa de juros”.

Há motivo para Lula querer preservar as obras públicas: assegurar um motor para a economia. Esta desacelera e tende a ser pior em 2024, análise compartilhada pelo “mercado” e governo. No primeiro semestre, o Brasil cresceu 3,2% na comparação com igual período do ano passado, patamar que o time de Haddad projeta como resultado final de 2023. Caso se confirme a previsão, será o primeiro desempenho na casa de 3% desde 2013, excetuando-se a alta de 5% de 2021, efeito estatístico determinado pela queda de 2020, devido à pandemia. Os analistas consultados toda semana pelo BC estimam expansão de 2,8% neste ano, similar ao esperado pelas duas maiores instituições financeiras privadas, Bradesco (2,7%) e Itaú (2,9%). Para o próximo ano, a Fazenda calcula 2,3%. Os analistas ouvidos pelo BC, 1,5%. O Bradesco, 2%. O Itaú, 1,8%.

Lula agrada ao deputado Arthur Lira, mas enfrenta uma “rebelião” no Senado

A performance de 3% pode ser a melhor em uma década, mas está longe de suprir as carências populares. O salário médio dos cerca de 100 milhões de trabalhadores foi de 2,982 mil reais em setembro, conforme o IBGE. Há uma década o valor oscila no nível de 2,8 mil, de 2,9 mil, sinônimo de empobrecimento. De 2013 a setembro passado, a inflação somou 86%. E ainda há um antigo e pornográfico traço nacional a piorar as coisas. Autor do recém-lançado livro Os Ricos e os Pobres: o Brasil e a Desigualdade, o soció­logo Marcelo Medeiros, do Ipea, diz na obra que metade dos trabalhadores adultos ganhou, no máximo, 1,2 mil mensais em 2021, quantia um pouco acima do salário mínimo da época, de 1,1 mil reais.

A volta da política de ganho real do salário mínimo, fixada numa lei de agosto, é uma das apostas do governo para melhorar (um pouco) a vida do trabalhador e da economia como um todo de 2024 em diante. A cifra, hoje em 1,32 mil reais, subirá para cerca de 1,46 mil no ano que vem. A mesma lei de agosto elevou a isenção de Imposto de Renda para 2,64 mil, outra medida capaz de dar alívio financeiro ao povão e de estimular o consumo. Na campanha, Lula prometeu isenção de 5 mil, algo que ainda pode ocorrer ao longo de seu mandato, paralelamente à tentativa de retomar a taxação sobre lucros e dividendos pagos a sócios de empresas, extinta em 1995. A propósito, neste ano, a isenção de Imposto de Renda dos assalariados na Colômbia passou ao equivalente a 12 mil reais mensais e na Argentina, a 23 mil reais.

A arrecadação federal não tem acompanhado a expansão da economia. De janeiro a setembro, caiu 0,9%. Uma situação incomum não experimentada por Lula nos mandatos anteriores, quando a bonança se refletia no caixa. Um colaborador econômico do presidente acredita que o Brasil passou por uma mudança estrutural ainda a ser compreendida. Ao reunir líderes e dirigentes partidários em 31 de outubro, o petista insistiu na necessidade de aprovar a agenda tributária de Haddad. Há duas semanas, a Câmara aprovou a taxação de offshores e fundos exclusivos, agora tem pela frente a alteração nas regras dos chamados juros sobre capital próprio e do desconto do ICMS na base de cálculo de impostos federais. Nos dois casos, o saldo final será arrecadar mais.

A taxação de offshores e fundos exclusivos, ambas aplicações de milionários, só foi votada pelos deputados após o governo anunciar a troca de comando na Caixa Econômica Federal. O banco com mais correntistas (150 milhões) terá à frente um apadrinhado do deputado Arthur Lira, o presidente da Câmara. “Aqui o governo continua sendo chantageado”, diz um deputado governista que não é do PT. Lula também tem sido (não há eufemismo possível) “chantageado” no Senado. Neste caso, por obra da “eminência parda”, ­Davi Alcolumbre, o comandante da poderosa Comissão de Constituição e Justiça.

Alcolumbre quer influenciar duas escolhas de Lula: o juiz do Supremo e o procurador-geral da República. Para o tribunal, o presidente cogita indicar o ministro da Justiça, Flávio Dino, e neste momento pesa os prós e os contras de tirá-lo do governo. Dino rivaliza com Lula no papel de tormento número 1 da oposição. Nenhum ministro foi chamado para tantas audiências públicas no Congresso neste ano. Seu estilo “bateu, levou, mas com classe e ironia” tira os bolsonaristas do sério. Dino seria aprovado na CCJ de Alcolumbre depois de o senador se aliar à extrema-direita de olho na eleição a presidente do Senado em 2025? O atual presidente, Rodrigo Pacheco, ungido por Alcolumbre, fez a mesma aliança recentemente. Cenários traçados por colaboradores de Pacheco sugerem que ele aposta no insucesso econômico do governo Lula e no peso das questões morais nas próximas eleições, a começar pelas municipais de 2024. O senador é potencial candidato a governador de Minas Gerais.

*Fonte: Pesquisa Genial/Quaest de outubro

A indicação do novo procurador-geral da República é uma disputa ainda mais delicada. O órgão é o único autorizado a acusar criminalmente à Justiça um parlamentar, um ministro e o presidente. Seu chefe sob Bolsonaro, Augusto Aras, era o sonho dos políticos: não incomodou ninguém. Em vários momentos daqueles inquéritos policiais em curso no Supremo a mirar bolsonaristas, a Procuradoria ficou a favor dos investigados. O relatório da CPI do 8 de Janeiro, que definiu o ex-presidente como autor intelectual do golpe fracassado, só terá consequência judicial se o órgão quiser. O trabalho da CPI da Covid, recorde-se, foi ignorado por Aras. Este era o nome do coração de Alcolumbre para ser escolhido por Lula, conforme o próprio senador disse à Folha de S.Paulo na segunda-feira 30. Era também o preferido de Lira.

Alcolumbre e Lira são os homens do orçamento secreto no Congresso, excrescência dinamitada em dezembro de 2022 pelo Supremo, mas que o lulismo ressuscitou em parte às vésperas da posse do petista. O “orçamento secreto” tem potencial para aborrecer Lira (Gilmar Mendes, do STF, livrou-o neste ano de uma investigação policial sobre grana para kits de robótica) e Alcolumbre (o ministro do Desenvolvimento Regional, Waldez Góes, é indicado dele e, como governador do Amapá, privilegiou empreiteiras de um dos dois suplentes do senador, ao tocar obras financiadas pelo “orçamento secreto”). Alcolumbre, aliás, afirmou à Folha: “Acho que o Congresso cada vez mais deveria controlar o orçamento”. A votação do orçamento de 2024 será “com emoção”, exigirá “malabarismo” do governo, de acordo com um articulador lulista.

As dificuldades do governo no Senado, e o clima por lá após a aliança de Alcolumbre/Pacheco com a oposição, ficaram evidentes com a derrota do indicado de Lula para chefiar a Defensoria Pública da União. Igor Albuquerque Roberto Roque, ex-presidente da associação nacional dos defensores de 2017 a 2019, foi rejeitado pelos senadores em 25 de outubro, por 38 a 35 votos. A extrema-direita tinha um pretexto para rejeitá-lo: um seminário que a Defensoria promoveria em agosto sobre aborto. Roque não comandava o órgão ainda, mas pagou o pato (o seminário foi cancelado). A bancada bolsonarista não tinha tamanho para barrar Roque. Governistas usaram a votação para mostrar insatisfação a Lula. No café com jornalistas, o petista comentou: “Possivelmente, eu tenha culpa (na rejeição)”. “Culpa” de não falar com os senadores para tomar o pulso. “Vou ter que ter mais cuidado de conversar com quem vota.”

No café, o presidente afirmou ainda que anunciará as escolhas para o Supremo e a Procuradoria ainda neste ano. E que vai fazê-lo “em função da circunstância política que eu tenho que levar em conta (…), não posso fechar os olhos e não enxergar que eu tenho que mandar um nome para ser aprovado pelo Senado”. Prenúncio de que a turma da chantagem vai se dar bem? •

Publicado na edição n° 1284 de CartaCapital, em 08 de novembro de 2023.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Freio de arrumação ‘

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