Cultura
Agentes secretos, na vida e na arte
Em O Túnel de Pombos, o best seller John Le Carré é espionado bem de perto pelo veterano Errol morris


Espiões tornaram-se meio fora de moda, agora que os apps sabem mais sobre todo mundo que a CIA e a KGB juntas. O Túnel de Pombos, documentário sobre o escritor britânico John Le Carré (1931-2020), não trata somente desses personagens que fizeram seus livros venderem mais que pães.
O filme, disponível na plataforma AppleTV, gasta pouco tempo caçando segredos. Seu fascínio consiste em demonstrar que temos mais em comum com os agentes secretos do que supõe a imaginação.
Na frente das câmeras, Le Carré nunca deixa de ser um personagem. Durante uma entrevista sinuosa, ele evoca o período breve em que se chamava David Cornwell e atuava no serviço secreto britânico em missões mais burocráticas que eletrizantes.
Atrás das câmeras, o veterano Errol Morris demonstra que entrevistar é uma arte bem maior que encadear perguntas. O portfólio de Morris inclui desde celebridades da política norte-americana, como os ex-secretários de Defesa dos EUA Robert McNamara e Donald Rumsfeld ou o estrategista Steve Bannon, ex-consultor de Donald Trump, até zés-ninguém contadores de histórias mirabolantes.
O documentarista atuou como detetive, antes de conseguir fazer cinema. Assim, ele adquiriu habilidades para fazer o entrevistado contar bem mais do que pretendia.
Em O Túnel de Pombos, Morris percorre um caminho duplo. De um lado, trata-se de identificar que segredos o espião David Cornwell contrabandeou para a literatura quando ele se metamorfoseou em John Le Carré, autor de grandes best sellers do gênero, como O Espião Que Saiu do Frio (1963) e O Espião Que Sabia Demais (1974).
De outro, trata-se de conduzir Le Carré a expor sua experiência e reflexões sobre a arte da escrita, a criação de ações e de personagens e a abordar suas relações atormentadas com o pai, meio empresário, meio golpista.
Em vez de apresentar isso como duas fases, Morris as organiza como duas faces do personagem. A duplicidade é fundamental na espionagem, pois os agentes simulam ou precisam agir sem ser percebidos. De modo equivalente, a criação literária demanda conceber personagens e ações com múltiplas atitudes e comportamentos.
Entre as duas faces, o próprio Le Carré aparece difratado entre a imagem pública de escritor célebre e as turbulências pessoais.
Errol Morris, como de hábito, evita a linearidade e o retrato nítido demais. Se verdades emergem, elas têm pouco a ver com reconstituição e muito com dissimulação. •
Publicado na edição n° 1284 de CartaCapital, em 08 de novembro de 2023.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Agentes secretos, na vida e na arte’
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