Cultura
Um desacato de bom
Rosane Pavam escreve sobre o flautista Altamiro Carrilho, o cavalheiro da música popular


Altamiro Carrilho tocava limpo. Nisto não havia quem o superasse. Mas ele também tinha duas outras características raras. Era tranquilo e infalível, mesmo se tudo aparentemente desse errado. E as coisas pareciam caprichosas naquele dia de 1935 quando, aos 11 anos, finalmente usou o primeiro instrumento comprado do próprio bolso, em substituição ao de lata que Papai Noel lhe dera. Da Santo Antônio de Pádua, Rio de Janeiro, onde nasceu, o pequeno funcionário da farmácia se mandaria à capital para, diante de Ary Barroso, disputar os oito prêmios acumulados no programa de rádio Calouros em Desfile. O menino infalível precisava de dinheiro às pencas, por isso não escolheu música fácil. Tocar Harmonia Selvagem, de Dante Santoro, com a flauta nova, mas precária, de molas quebradas, substituídas ocasionalmente por elásticos de amarrar dinheiro, era coisa para quem, dentro de si, exibia um mar tranquilo.
Pois a flauta desandou no fá sustenido e ele continuou tocando. Ary Barroso, como não era seu costume, deixou rolar, não sem antes estar seguro de que um problema sério ocorrera com o instrumento, que ele qualificou, humor corrosivo, de “porta de lavanderia”. Mandou o garoto voltar ao fim do programa, o elástico trocado, e após a nova execução lhe deu um prêmio de encher a despensa de dona Lyra, a mãe do menino, musical desde o nome. Depois disso, é como se tudo encaixasse para ele, que o futuro verificaria bom de letra, bom de timbre, bom de afinar, de executar e arranjar os sons. E não era de música que ele queria viver? Moreira da Silva, tão impressionado por sua exibição no programa de calouros, quis que ele o acompanhasse em seu conjunto. Gravar no grupo do flautista Benedito Lacerda, parceiro de Pixinguinha, substituindo-o aos 14 anos, a ponto de Benedito julgar, ouvindo o disco, que ele próprio tocara aquelas linhas, não seria para um qualquer.
Assim viveu Altamiro Carrilho, um dos maiores instrumentistas e compositores do choro e de toda a música popular do Brasil. O cavalheiro um tom acima. Foram duzentas as canções de sua autoria, quase cem os seus discos, muitas as suas participações memoráveis, em As Rosas não Falam e O Mundo é um Moinho, gravadas por Cartola, em Meu Caro Amigo, por Chico Buarque, ou naquele Brasileirinho de Waldir Azevedo que ele tornou tão seu. Um desacato de bom até as horas finais, Altamiro Carrilho morreu aos 87 anos na manhã do dia 15, um mês após a constatação de que os pulmões seus aliados eram vítimas de um câncer e iriam lhe faltar.
Altamiro Carrilho tocava limpo. Nisto não havia quem o superasse. Mas ele também tinha duas outras características raras. Era tranquilo e infalível, mesmo se tudo aparentemente desse errado. E as coisas pareciam caprichosas naquele dia de 1935 quando, aos 11 anos, finalmente usou o primeiro instrumento comprado do próprio bolso, em substituição ao de lata que Papai Noel lhe dera. Da Santo Antônio de Pádua, Rio de Janeiro, onde nasceu, o pequeno funcionário da farmácia se mandaria à capital para, diante de Ary Barroso, disputar os oito prêmios acumulados no programa de rádio Calouros em Desfile. O menino infalível precisava de dinheiro às pencas, por isso não escolheu música fácil. Tocar Harmonia Selvagem, de Dante Santoro, com a flauta nova, mas precária, de molas quebradas, substituídas ocasionalmente por elásticos de amarrar dinheiro, era coisa para quem, dentro de si, exibia um mar tranquilo.
Pois a flauta desandou no fá sustenido e ele continuou tocando. Ary Barroso, como não era seu costume, deixou rolar, não sem antes estar seguro de que um problema sério ocorrera com o instrumento, que ele qualificou, humor corrosivo, de “porta de lavanderia”. Mandou o garoto voltar ao fim do programa, o elástico trocado, e após a nova execução lhe deu um prêmio de encher a despensa de dona Lyra, a mãe do menino, musical desde o nome. Depois disso, é como se tudo encaixasse para ele, que o futuro verificaria bom de letra, bom de timbre, bom de afinar, de executar e arranjar os sons. E não era de música que ele queria viver? Moreira da Silva, tão impressionado por sua exibição no programa de calouros, quis que ele o acompanhasse em seu conjunto. Gravar no grupo do flautista Benedito Lacerda, parceiro de Pixinguinha, substituindo-o aos 14 anos, a ponto de Benedito julgar, ouvindo o disco, que ele próprio tocara aquelas linhas, não seria para um qualquer.
Assim viveu Altamiro Carrilho, um dos maiores instrumentistas e compositores do choro e de toda a música popular do Brasil. O cavalheiro um tom acima. Foram duzentas as canções de sua autoria, quase cem os seus discos, muitas as suas participações memoráveis, em As Rosas não Falam e O Mundo é um Moinho, gravadas por Cartola, em Meu Caro Amigo, por Chico Buarque, ou naquele Brasileirinho de Waldir Azevedo que ele tornou tão seu. Um desacato de bom até as horas finais, Altamiro Carrilho morreu aos 87 anos na manhã do dia 15, um mês após a constatação de que os pulmões seus aliados eram vítimas de um câncer e iriam lhe faltar.
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