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Drauzio Varella humaniza os carcereiros em nova narrativa

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Sobriedade, a arma de Drauzio Varella para mostrar o inferno de seres quiçá maus estigmatizados que os prisioneiros
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por Renato Pompeu

As palavras de Drauzio Varella são sóbrias e sua linguagem é coloquial neste Carcereiros, segundo volume de uma trilogia que começou com Estação Carandiru, em 1999, e deverá ser concluída com Prisioneiras. Mas as descrições de ações como o puxar a rodo o sangue derramado no massacre do Carandiru e depois ir espairecer num boteco do outro lado da rua são como pedras pontiagudas que dão a sensação de rasgar a pele do leitor.

Tais narrativas do cotidiano ganham força porque os cidadãos aqui descritos, muitas vezes honestos e pacatos, viram quando jovens, na função de carcereiro, a oportunidade de uma carreira estável. E o que passaram a viver profissionalmente, em verdade, foi um inferno, embora não aquele de Dante, uma vez que nem mesmo puderam contar com um poeta como Virgílio a guiá-los, parafraseando uma observação do escritor Honoré de Balzac. Todo o inferno descrito em Carcereiros é verdadeiro, exceto os nomes de alguns de seus protagonistas.

No livro Estação Carandiru, que em 2003 virou filme dirigido por Hector Babenco, Varella havia explorado o mundo surreal dos presos do desaparecido complexo carcerário. Em Prisioneiras, lidará com as detentas da penitenciária feminina. Nestas duas instituições, o escritor atuou como médico voluntário durante cerca de duas décadas e conheceu de perto homens e mulheres que transgrediram as leis, mais duras com os de baixo do que com os de cima. Na obra ora lançada, intermediária, Drauzio Varella trata de seres talvez mais estigmatizados do que os prisioneiros, com os quais conviveu tanto dentro quanto fora das masmorras, em conversas de botequim.

O autor desconstrói a imagem comumente difundida dos carcereiros como truculentos, arbitrários e desalmados. Esses seres humanos nos aparecem em seu livro como realmente são, eternamente em situações-limite nas horas de serviço. Não são particularmente violentos, mesmo porque é normal andarem desarmados (suas únicas armas, em geral, são os molhos de chaves que portam). À sua volta, contudo, estão criminosos que, com uma frequência maior do que se imagina, portam facas, improvisadas ou não, embora estejam presos.

Fora da cadeia, os carcereiros podem cultivar flores ou levar o filho ao hospital, mas dentro dela enfrentam desafios que para todos nós seriam cruciais. Eles precisam continuamente decidir como reagir a uma oferta de suborno, intervir numa briga de faca ou evitar que um soldado se vingue a tiros de um detento do qual tenha más lembranças da rua. Drauzio Varella resgata a humanidade desses seres desprezados pela sociedade a que servem e que estão sempre en situation, como dizia o pensador francês Jean-Paul Sartre.

Carcereiros


Drauzio Varella


Companhia das Letras, 232 págs.


R$33

por Renato Pompeu

As palavras de Drauzio Varella são sóbrias e sua linguagem é coloquial neste Carcereiros, segundo volume de uma trilogia que começou com Estação Carandiru, em 1999, e deverá ser concluída com Prisioneiras. Mas as descrições de ações como o puxar a rodo o sangue derramado no massacre do Carandiru e depois ir espairecer num boteco do outro lado da rua são como pedras pontiagudas que dão a sensação de rasgar a pele do leitor.

Tais narrativas do cotidiano ganham força porque os cidadãos aqui descritos, muitas vezes honestos e pacatos, viram quando jovens, na função de carcereiro, a oportunidade de uma carreira estável. E o que passaram a viver profissionalmente, em verdade, foi um inferno, embora não aquele de Dante, uma vez que nem mesmo puderam contar com um poeta como Virgílio a guiá-los, parafraseando uma observação do escritor Honoré de Balzac. Todo o inferno descrito em Carcereiros é verdadeiro, exceto os nomes de alguns de seus protagonistas.

No livro Estação Carandiru, que em 2003 virou filme dirigido por Hector Babenco, Varella havia explorado o mundo surreal dos presos do desaparecido complexo carcerário. Em Prisioneiras, lidará com as detentas da penitenciária feminina. Nestas duas instituições, o escritor atuou como médico voluntário durante cerca de duas décadas e conheceu de perto homens e mulheres que transgrediram as leis, mais duras com os de baixo do que com os de cima. Na obra ora lançada, intermediária, Drauzio Varella trata de seres talvez mais estigmatizados do que os prisioneiros, com os quais conviveu tanto dentro quanto fora das masmorras, em conversas de botequim.

O autor desconstrói a imagem comumente difundida dos carcereiros como truculentos, arbitrários e desalmados. Esses seres humanos nos aparecem em seu livro como realmente são, eternamente em situações-limite nas horas de serviço. Não são particularmente violentos, mesmo porque é normal andarem desarmados (suas únicas armas, em geral, são os molhos de chaves que portam). À sua volta, contudo, estão criminosos que, com uma frequência maior do que se imagina, portam facas, improvisadas ou não, embora estejam presos.

Fora da cadeia, os carcereiros podem cultivar flores ou levar o filho ao hospital, mas dentro dela enfrentam desafios que para todos nós seriam cruciais. Eles precisam continuamente decidir como reagir a uma oferta de suborno, intervir numa briga de faca ou evitar que um soldado se vingue a tiros de um detento do qual tenha más lembranças da rua. Drauzio Varella resgata a humanidade desses seres desprezados pela sociedade a que servem e que estão sempre en situation, como dizia o pensador francês Jean-Paul Sartre.

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