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Abraço de urso

Biden deixa-se enredar por Netanyahu e torna-se sócio da iminente catástrofe

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Cumplicidade. O presidente dos Estados Unidos reforçou o apoio bélico e militar a Netanyahu e chancelou a invasão de Gaza – Imagem: Miriam Alster/AFP
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E isso? Será isso o que os maiores líderes ocidentais podem fazer enquanto a hora H se aproxima? O “gentil” Joe Biden distribuiu simpatia e dólares em uma visita de sete horas a Israel. Pequenas quantidades de ajuda pingam em Gaza. Dois de 200 reféns foram libertados. Mas não há cessar-fogo, não há “pausa humanitária” ou zona segura, não há fim para os bombardeios, não há plano de longo prazo. Crescem os temores de uma conflagração cada vez maior.

Em vez disso, há uma aquiescência ocidental relutante, embora vergonhosa, sobre o iminente ataque militar em grande escala de Israel a Gaza – com seu objetivo compreensível, mas inatingível: a erradicação definitiva do Hamas. Com mais de 4 mil palestinos mortos, o “time” do primeiro-ministro israelense, Benjamin ­Netanyahu, para usar o termo chocante escolhido por Biden, deveria receber cartão vermelho. Acabou de receber luz verde.

A desordem política ocidental, a confusão e a hesitação diante desse desastre em evolução são desanimadoras. Os primeiros-ministros visitantes, o britânico Rishi Sunak e o alemão Olaf Scholz, imprensando Biden, agiram para agradar ao seu público doméstico e, deixando de lado as gentis palavras de cautela, agiram como queria Netanyahu. Os desacordos entre autoridades graduadas transformaram a União Europeia num espectador quase irrelevante.

No Conselho de Segurança da ONU, guardião esfarrapado do ultrajado direito internacional, a França e todos os outros apoiaram um esboço de resolução para interromper as hostilidades e anular a ordem de evacuação do norte de Gaza dada por Israel. Mas os Estados Unidos vetaram, dizendo que isso ataria as mãos de Israel. Pateticamente, o Reino Unido absteve-se, juntamente com a Rússia, uma combinação infeliz.

Muita diplomacia está em curso nos bastidores. O maior receio é que, se Israel atacar, o Hezbollah no Líbano abra uma segunda frente. A instabilidade tem se alastrado ao Iraque e à Síria. As promessas dos Estados Unidos de fornecer mais bombas e balas para Israel enfurecem o mundo muçulmano. Entretanto, ninguém, nem mesmo Biden, sabe qual é o plano de Netanyahu pós-Hamas, pós-guerra. Isso porque quase certamente não existe um.

As atrocidades terroristas de 7 de outubro, que ceifaram 1,4 mil vidas israelenses, foram chocantes. Poucos contestam que Israel tem o direito legal e moral de se defender. Mas os líderes árabes, temendo a ira do seu povo, têm razão quando dizem que a punição coletiva de civis não é a melhor forma de reagir. A ONU também exige um cessar-fogo. Sem isso, outras tragédias como a explosão do hospital anglicano al-Ahli serão inevitáveis. Apesar do que dizem as dissimuladas autoridades britânicas, não existe uma invasão “calma e comedida”.

O gabinete de guerra de Israel estabeleceu quatro objetivos para a “Operação Espadas de Ferro”: destruir militarmente o Hamas, eliminar a ameaça terrorista em Gaza, resolver a crise dos reféns e defender as fronteiras do Estado e os cidadãos. Mas as autoridades admitem que ainda discutem o que virá depois. Dizem que uma ocupação renovada é impossível. Mas parece faltar uma estratégia de saída. Uma invasão “significará confrontar o Hamas no seu território e será provavelmente um assunto prolongado e sangrento”, alertou o Grupo de Crise Internacional, independente. “Livrar Gaza de maneira sustentável de todas as manifestações daquilo que os israelenses consideram terrorismo e que muitos palestinos chamam de resistência será impossível, se não houver uma ampla mudança política.”

Então, quem poderia governar Gaza, supondo que o Hamas seja de fato deposto definitivamente? Um administrador nomeado pela ONU e apoiado por forças de manutenção da paz? Uma espécie de Alto Representante internacional, como na Bósnia? Sugere-se que o controle poderia ser devolvido à Autoridade Palestina, destituída pelo Hamas em 2007. Mas a AP é fraca e mal-amada. Para começar, seu presidente, Mahmoud Abbas, teria de abrir caminho para novos líderes eleitos.

O presidente dos EUA cometeu erros básicos no Oriente Médio

Em todo caso, não está claro quanta influência os líderes ocidentais hesitantes podem exercer sobre qualquer acordo para o pós-guerra. O apoio aparentemente incondicional de Biden e Sunak a Israel os desqualifica como mediadores da paz. A Liga Árabe exige novamente a retomada de conversações para a criação de um Estado palestino. Mais do que nunca, Israel não está escutando.

Biden cometeu três erros básicos no Oriente Médio desde 2021. Concentrando-se nas questões internas e na China, tentou ignorar a região. Não é possível. Em segundo lugar, embarcou nos Acordos de Abraão de Donald Trump e na caravana de normalização árabe-israelense. Fatalmente, esses acordos “históricos” tentaram contornar o conflito palestino. Terceiro: Biden não conseguiu reagir duramente quando Netanyahu, um grande fã de Trump, montou seu próprio golpe antidemocrático no estilo do Capitólio, aliou-se a fanáticos da extrema-direita determinados a anexar a Cisjordânia e minou os esforços dos Estados Unidos para atenuar as tensões com o Irã. ­Biden ignorou-o, mas pouco mais que isso.

Essa geada derreteu forçosamente, mas não porque o líder de Israel tenha mudado de repente. Netanyahu luta desesperadamente para sobreviver. Quando Biden desceu do Air Force One em Tel-Aviv na quarta-feira 18, foi apertar a mão de Netanyahu. Mas este o agarrou num abraço de urso carente. Perigoso, profundamente impopular, duas-caras, tóxico – esse é Netanyahu hoje.

Não é exagero dizer que ele poderia arrastar Biden consigo. Após o choque inicial os ter reunido, os dois líderes estão novamente em caminhos divergentes. Longe de buscar uma desescalada, ­Netanyahu prevê uma “longa guerra”. Na verdade, parece que é o que ele quer. “Isto não é do interesse de ninguém, exceto de Netanyahu, que, provavelmente, vê o fim de seu governo chegar com o término da próxima batalha com o Hamas”, comentou o analista norte-americano ­David ­Rothkopf. Um conflito prolongado, que inflija mais vítimas civis e maior instabilidade regional, poderá afetar ainda mais profundamente os Estados Unidos.

Biden, emanando empatia, limitado por seus pontos cegos e por sua natureza positiva, agora é o “dono” desta guerra. Se a situação se deteriorar ainda mais, não haverá como escapar. Ele tem uma longa guerra para travar, com a Rússia na Ucrânia. E potencialmente enfrenta outra, fria ou quente, com a China. Como abutres a voar em círculos, Vladimir Putin e Xi Jinping, que se encontraram em Pequim, assistem tranquilamente.

Seja quem for o culpado, e certamente não é tudo culpa dele, esta catástrofe se desenrola sob o comando de Biden. Os comparsas de Trump e do Partido Republicano estão à espreita. Falta apenas um ano para a eleição presidencial nos Estados Unidos em 2024. É triste pensar que Netanyahu, que Biden tanto fez para salvar, estaria entre os que aplaudem a sua derrota. •


Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves.

Publicado na edição n° 1283 de CartaCapital, em 01 de novembro de 2023.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Abraço de urso’

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