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Os demônios de Tio Sam

A periclitação da hegemonia acirra o exercício agressivo do poder de Washington

Os demônios de Tio Sam
Os demônios de Tio Sam
Imagem: James Montgomery Flagg/Biblioteca do Congresso dos EUA
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Em pronunciamento depois da visita ao conturbado Médio Oriente, o presidente Joe Biden encarnou o espírito norte-americano. Disse o senhor da guerra: “Deixe-me compartilhar com vocês por que garantir que Israel e a Ucrânia tenham sucesso é vital para a segurança nacional dos Estados Unidos. Você sabe, a história nos ensinou que, quando os terroristas não pagam um preço por seu terror, quando os ditadores não pagam um preço por sua agressão, eles causam mais caos, morte e mais destruição.  Eles continuam e o custo e as ameaças aos Estados Unidos e ao mundo continuam aumentando”.

Um episódio revelador das proezas do American Spirit ocorreu no Irã, em 19 de agosto de 1953. O Arquivo de Segurança Nacional dos Estados Unidos liberou, em 2013, documentos que registram as façanhas da CIA no Irã. “O golpe militar que derrubou Mohammed Mossadegh e o governo da Frente Nacional foi realizado sob direção da CIA como um ato de política externa norte-americana.” A CIA usava e usa criptônimos para identificar operações clandestinas, tal como o golpe que em 1953 apeou o primeiro-ministro iraniano Mohamed Mossadegh. Ajax foi o criptônimo atribuído à operação. Essa empreitada aliou o xá do Irã, Rezha ­Pahlevi, Winston Churchill, Anthony Eden com o presidente Eisenhower, ­John ­Foster Dulles e a Agência Central de Inteligência dos EUA. A ideia da Ajax veio da inteligência britânica, depois de baldados esforços junto a Mossadegh para reverter a nacionalização da Anglo-Iranian Oil Company (AIOC). A motivação britânica era simplesmente recuperar a concessão de petróleo da AIOC.

No livro Patriot of Persia, Christopher Bellaigue registra o “arrependimento” norte-americano. “Anos mais tarde, os Estados Unidos reconheceriam que, ao derrubar Mossadegh, cometeram um erro terrível, pois sufocaram valores que simpatizavam com os seus. Em 2000, Madeleine Albright, secretária de Estado de Clinton, reconheceu que, em 1953, os EUA desempenharam “papel significativo na orquestração da derrubada do popular primeiro-ministro iraniano ­Mohammed Mossadegh”, e que isso tinha sido claramente “um revés para o desenvolvimento político do Irã”.

Bellaigue traça o perfil de Mossadegh e o retrata como o primeiro líder liberal do Oriente Médio moderno. “Era um racionalista que odiava obscurantismo e acreditava na primazia da lei. Sua compreensão da liberdade foi excepcional no Irã e em toda a região. Na verdade, o Ocidente teria gostado mais dele se ele tivesse sido menos comprometido com a liberdade.” Ele não recuaria de sua demanda por independência econômica para atender a Grã-Bretanha. Ele não prenderia comunistas para agradar a Washington. O plano para derrubá-lo fez um grande dano aos interesses ocidentais.

Para Bellaigue, o episódio ­Mossadegh foi o início de uma política dos EUA em apoio aos déspotas de má qualidade do Oriente Médio. A lógica dessa política era assim: “Os orientais não podem ser entregues à independência e à liberdade. Homens fortes, pró-americanos, oferecem a melhor esperança de estabilidade”. Saddam Hussein era um homem forte. Hosni Mubarak também. A galeria dos déspotas é longa e bem fornida.

Essa política sofreu sua primeira derrota em 1979, quando os revolucionários islâmicos do aiatolá Khomeini derrubaram o xá. Khomeini revelou distância das ideias de Mossadegh. “Não estamos interessados em petróleo”, anunciou, logo após seu retorno triunfante do exílio. “Queremos o Islã”. Quanto à democracia de estilo ocidental, equivale à “usurpação da autoridade de Deus para governar”.

No alvorecer do século XXI, os Estados Unidos invadiram o Iraque a pretexto de aniquilar um arsenal de “armas de destruição em massa”. Depois do atentado às Torres Gêmeas, o presidente ­George W. Bush contra-atacou, reinventando a tal “ameaça iraquiana”. A ameaça estaria escondida sob a forma de armas químicas, atômicas e biológicas nos porões dos palácios de Saddam Hussein. Um dos inspetores da ONU, de nacionalidade norte-americana, afirmou que o relatório apresentado para fundamentar a decisão de invadir era mentiroso. Lembrando a história do lobo e do cordeiro, pouco importa a verdade. Os Estados Unidos e a cupincha Inglaterra não gostavam de Saddam. Por isso, os mísseis Tomahawk e ataques aéreos foram disparados sobre as cabeças do pobre povo do Iraque.

Os meios de comunicação informavam, então, que mais de 60% dos norte-americanos apoiavam a decisão do presidente e do Conselho de Segurança Nacional. Os debates no Congresso apresentaram pronunciamentos incrivelmente “patrióticos”, louvando a coragem dos bravos rapazes e moças que levam adiante mais esta guerra travada em nome da civilização e da democracia.

Os Estados Unidos estão se tornando um país mais parecido com ele mesmo

As transgressões aos direitos dos povos continuam a ser executadas com persistência, sempre edulcoradas com a preocupação de invocar razões “morais” para suas tropelias e barbaridades. O ex-presidente Ronald Reagan ficou conhecido, entre outras coisas, por ter declarado que a finada União Soviética era o Império do Mal. O desaparecimento desse demônio não parece, no entanto, ter diminuído o poder do inferno. Entre aliados e adversários há a percepção de que o Mal, o Grande Satã, não estava exatamente onde Reagan o imaginava, mas se transferiu de armas e bagagens para a Casa Branca e suas redondezas.

O demônio ocupa os subterrâneos da ordem imperial em declínio, um império que abandonou a hegemonia benevolente do imediato pós-Guerra para se agarrar desesperadamente ao exercício puro e duro do que ainda resta de seu poder. A periclitação da hegemonia acirra o exercício agressivo do poder. Esse é o fenômeno que perturba os terráqueos, atônitos entre a morte do velho e as incertezas do novo.

Na ordem norte-americana em farrapos, o nomos da terra significa a exigência de respeito à vontade imperial, à sua moral particularista, idiossincrática e assimétrica. O direito, dizia Hegel, enquanto existência da liberdade, é uma determinação essencial na refrega contra a “boa intenção” moral. “Os protestos contra esse desenvolvimento são… reminiscências do ‘estado bruto de natureza’ que revelam um apego doentio à própria particularidade, narcisisticamente desfrutada como moral.”

O narcisismo moral dos EUA não precisa de adjetivos. Está sempre preparado para qualificar os recalcitrantes e dessemelhantes como “Estados bandidos”. O avanço do narcisismo intervencionista norte-americano é constitutivo de sua natureza e demonstra por que eles tomam o seu país como a “utopia realizada”. Os Estados Unidos estão se tornando um país mais parecido com ele mesmo. Uma reconciliação do fenômeno com o conceito, provavelmente a apoteose do fim da história. •

Publicado na edição n° 1283 de CartaCapital, em 01 de novembro de 2023.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Os demônios de Tio Sam’

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