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Salgar a terra

A diplomacia segue encurralada, enquanto Israel ensaia uma invasão “mortífera” ao território palestino

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Os corpos se a acumulam em Gaza – Imagem: Mohammed Abed/AFP
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O adiamento da invasão das tropas israelenses à Faixa de Gaza não deve ser interpretado como um recuo do governo de “emergência nacional” sob o comando de ­Benjamin Netanyahu ante eventuais pressões externas. As forças militares estacionadas na fronteira parecem apenas esperar o momento certo para o início, segundo as palavras do ministro da Defesa, Yoav Gallant, de uma incursão “precisa e mortífera”. As ligeiras investidas em território palestino nos últimos dias, à caça de inimigos, são um ensaio do que está por vir. “Esta deve ser a última guerra em Gaza. Pela simples razão de que não haverá mais Hamas. Levará um mês, dois meses, três meses”, afirmou Gallant no domingo 22. Os bombardeios não cessam, porém, assim como o bloqueio de combustíveis e energia que ameaça o funcionamento dos hospitais. Só na terça-feira 24, cerca de 700 palestinos foram mortos por mísseis lançados a partir de Israel. Com uma população majoritariamente jovem, não é de surpreender o número de vítimas menores de 18 anos. São ao menos 2.360 desde 7 de outubro, contabiliza a Unicef, agência das Nações Unidas para a infância. “A situação é uma mancha crescente na nossa consciência coletiva. A taxa de mortalidade e ferimentos de crianças é simplesmente impressionante”, afirmou Adele Khodr, diretora do Unicef para o Oriente Médio e Norte da África.

Esta foi mais uma semana de flagrantes derrotas da diplomacia. A esta altura, é mais plausível o conflito se espalhar pela região, devido às rusgas com o ­Hezbollah na divisa com o ­Líbano e da morte de ­oito militares sírios em um ataque israelense, do que se chegar a um acordo de cessar-fogo. O Conselho de Segurança da ONU continua bloqueado pelos Estados Unidos, guarda-costas do governo ­Netanyahu. Respaldado por ­Washington, Israel tem ido além de ignorar a opinião do resto do planeta. Nos últimos dias, a diplomacia do ­país tornou-se mais agressiva em relação a quem contesta o “direito de autodefesa” (ou de vingança) de ­Tel-Aviv. A última vítima foi o secretário-geral da ONU, ­António ­Guterres, que ousou ao mesmo tempo repudiar os ataques do Hamas, mas lembrar que a violência não “aconteceu no vácuo”, guarda relação com os 56 anos de “asfixia” do povo palestino e não justifica a “punição coletiva” dos habitantes de ­Gaza. Gilad Erdan, representante israelense nas Nações Unidas, acusou ­Guterres de tolerância com o terrorismo e sugeriu a sua renúncia, enquanto o Ministério de Relações Exteriores decidiu negar vistos a funcionários da organização.

“Será a última guerra” na região, promete o ministro da Defesa, Yoav Gallant

A União Europeia também não se entende e os líderes do continente passaram a agir por conta própria. Na ­terça-feira 24, o presidente francês, Emannuel Macron, reuniu-se com ­Mahmoud Abbas, da Autoridade ­Palestina, e Netanyahu, além de visitar parentes de vítimas francesas no conflito. Diante do primeiro-ministro israelense, Macron repetiu os argumentos de Guterres: condenou o Hamas e propôs uma coalização contra o terrorismo, mas defendeu a criação de um Estado palestino como única opção para uma paz duradoura. A viagem serviu ao álbum de fotos do francês – e só. Abbas tornou-se figura irrelevante no conflito, contestado por seu povo, que o considera conivente com Israel. Netanyahu, por sua vez, tem uma agenda própria – além de aplacar a sede de vingança de parte dos israelenses, manter-se no poder a todo custo – e conta com o único respaldo que faz diferença a Tel-Aviv, o de Joe Biden. Em resposta a Macron, o premier israelense repetiu a ladainha da luta da “civilização contra a barbárie” e pregou o extermínio do grupo palestino. “O­ H­amas”, afirmou, “não ameaça apenas os judeus. Ameaça o Oriente Médio, ameaça a Europa, ameaça o mundo.”

Os embates entre as forças israelenses e combatentes do Hezbollah continuam a ser a maior fonte de risco de um alastramento do conflito. “Não temos paciência para tolices e iremos desferir ataques contundentes contra aqueles que pretendem nos atacar”, afirmou à Sky News o tenente-coronel Peter Lerner, no comando das tropas israelenses na fronteira com o Líbano. O ­Hezbollah é militarmente mais organizado e poderoso do que o Hamas – e teria sob seu poder, estima-se, cerca de 100 mil foguetes, o que elevaria o embate a outra dimensão. De acordo com ­Hadi ­Hachem, embaixador libanês na ONU, o país tem se esforçado para manter distância da guerra, mas o governo não controla os paramilitares e as escaramuças na fronteira têm aumentado de intensidade. “Com base nas minhas reuniões e na dinâmica no terreno, diria o seguinte: o risco de expansão do conflito é real, muito, muito real e extremamente perigoso”, afirmou Tor Wennesland, enviado das Nações Unidas ao Oriente Médio.

O Conselho de Segurança da ONU voltaria a se reunir na quinta-feira 26, após o fechamento desta edição. O Brasil, na presidência rotativa, submeteu aos 15 integrantes a proposta de ­Washington, que sugere uma “pausa humanitária” no lugar do cessar-fogo e a inclusão no texto de um trecho sobre “o direito inerente de todos os Estados” à autodefesa, salvo-conduto às atrocidades cometidas por Israel em Gaza. A chance de aprovação continua mínima. Depois da rejeição da minuta da Rússia e o veto dos Estados Unidos à resolução brasileira, o Conselho tornou-se uma torre de babel, na qual todos falam e ninguém escuta. “Acompanhamos com pesar a incapacidade deste Conselho, por duas vezes, de adotar uma resolução ou mesmo de apelar a um cessar-fogo para pôr fim a esta guerra”, lamentou o chanceler do Egito, Sameh Shoury. •

Publicado na edição n° 1283 de CartaCapital, em 01 de novembro de 2023.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Salgar a terra’

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