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‘Bom dia, estou vivo’: moradores de Gaza informam parentes sobre guerra que já matou 4,3 mil palestinos
Solenidade e desespero pontuam as mensagens enviadas a amigos, colegas e ao mundo por meio de celulares ou redes sociais


“Bom dia, ainda estou vivo.” Com essas palavras, todas as manhãs, milhares de palestinos da Faixa de Gaza informam seus familiares sobre como passaram a noite, via SMS ou redes sociais. O pequeno território tem sido incessantemente bombardeado pelo Exército israelense, que mantém um bloqueio cada vez mais questionado contra os civis palestinos, enquanto trava uma guerra para aniquilar o movimento islâmico Hamas, autor do maior ataque terrorista da história de Israel.
Pelo menos 4.385 palestinos foram mortos desde o início da guerra entre Israel e o Hamas, em 7 de outubro, anunciou o Ministério da Saúde de Gaza neste sábado 21. De acordo com o novo balanço divulgado pelo movimento islâmico palestino, 1.756 crianças e 967 mulheres estão entre os mortos. Os ataques de retaliação de Israel também deixaram pelo menos 13.561 pessoas feridas no pequeno território palestino. Durante a manhã, os primeiros caminhões com ajuda humanitária à população sitiada chegaram ao enclave pelo posto de fronteira de Rafah, vindos do Egito.
O Exército israelense tem bombardeado a Faixa de Gaza principalmente à noite. Como resultado do “cerco total” anunciado por Israel dois dias após o ataque do Hamas, o fornecimento de eletricidade para a Faixa de Gaza foi cortado. Essa falta de energia está prejudicando gravemente as comunicações entre o resto do mundo e o território, que está mergulhado na escuridão.
“Morrerei de pé”
“Estou gravando esta mensagem, que pode ser a última, embora eu espere que não”, escreve Mahmoud Shalabi, executivo da ONG britânica Medical Aid for Palestinians, para seus colegas de Beit Lahia, no norte do enclave. Ele continua contando sobre seu dia, pontuado por “bombardeios que afetam a todos”. “Não deixarei minha casa (…) morrerei de pé, minha única existência nesta terra é um testemunho de resistência”, completou. Nos últimos dias, o Exército israelense recomendou aos habitantes do norte do território que se transferissem para o sul, antes do lançamento de uma provável ofensiva terrestre.
Solenidade e desespero pontuam as mensagens enviadas a amigos, colegas e ao mundo por meio de celulares ou redes sociais. “É o tipo de coisa que eu tento impedir que digam logo de cara, quando me dizem ‘se algo acontecer conosco, cuide-se'”, diz Walid, um cidadão de Gaza que vive em Paris e não quis revelar seu sobrenome.
O jovem não consegue falar com seus pais ao telefone todos os dias. “Às vezes ligo dez vezes seguidas e não obtenho sinal de discagem, às vezes recebo uma mensagem enviada no dia anterior, às vezes consigo colocá-los na linha, mas ela é cortada após 30 segundos”, diz ele.
Na ausência de 3G na Faixa de Gaza, para falar uns com os outros, os palestinos precisam usar telefones fixos, que são raros, ou usar a internet, que requer eletricidade, coisa que também é rara.
Alguns usam geradores, que requerem combustível – agora também escasso –, enquanto outros utilizam baterias de carro.
Hebh Jamal, uma cidadã de Gaza que vive em Mannheim, na Alemanha, declarou: “Minha família decidiu alimentar seus geradores com óleo de cozinha para recarregar seus telefones”.
Duas das três principais instalações de comunicação móvel e de internet foram destruídas pelos ataques aéreos, de acordo com o Escritório da ONU para a Coordenação de Assuntos Humanitários.
“Assistindo à Al-Jazeera“
“Não podemos telefonar uns para os outros”, diz Jamal, que afirma não ter notícias de parte da família dos sogros. Para aqueles com quem consegue falar, ela descreve as conversas da seguinte forma: “Bombardearam sua área em Khan Younès hoje; estão todos bem?”. A resposta é um temporário “não foi na nossa casa; graças a Deus estamos vivos”.
Depois de várias horas sem nenhuma notícia dos pais, Walid diz que se viu “assistindo aos rostos das vítimas dos bombardeios na Al-Jazeera“, “a única maneira de obter notícias ao vivo, e nem sempre”. Os jornalistas locais estão sujeitos às mesmas restrições que o restante da população. Quanto aos jornalistas estrangeiros, eles não têm acesso ao território.
De Haute-Savoie (França), Wafa Eleiwa liga para seus pais, de 63 anos, a cada hora, apenas para falar com eles uma vez. Ele não se atreve a perguntar “o que eles têm para comer” quando, de acordo com as organizações internacionais de ajuda humanitária, todos os alimentos estão em falta.
“As pessoas ficam chocadas”, diz Wafa, que insiste que é difícil conversar com pessoas próximas a ela que “temem por suas vidas” ou que perderam familiares. Nesse clima de restrições e ansiedade, muitos temem rumores e propaganda.
Sem contato
“Estamos completamente desconectados”, diz Jamileh Tawfiq, uma jornalista e escritora de 26 anos que se mudou para Khan Yunis com toda a sua família. Seus pais perguntam a seu irmão, fora de Gaza, como os países árabes estão reagindo ou quantas pessoas morreram. “Quando fico sabendo de outras pessoas (na Faixa de Gaza), é por acaso”, diz ela.
A jornalista conta que para ter acesso à rede telefônica, é obrigada a sair do local onde fixou residência temporariamente e caminhar por mais de dez minutos, embora exista o risco de ser bloqueada por bombardeios. Ela diz que faz questão de reportar o que está acontecendo na Faixa de Gaza – “é uma responsabilidade importante”. Por outro lado, afirma “sempre ter medo de perder o contato”.
O Exército de Israel também atualizou neste sábado o balanço de vítimas no país. Ao menos 1.400 pessoas morreram, a maioria civis atingidos por balas, queimados vivos ou mutilados no dia do ataque do Hamas. Dentro deste balanço, 307 mortos eram soldados israelenses. O Hamas ainda mantém 210 reféns na Faixa de Gaza.
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