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Enjaulados na Faixa de Gaza, os palestinos são tratados como animais à espera do abate

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Enquanto destrói a Faixa de Gaza, Israel oferece duas opções aos palestinos: morrer soterrado ou de fome e sede – Imagem: Mohammed Abed/AFP
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De Ashkelon, na fronteira sul de Israel, à cidade de Gaza não existem barreiras naturais. A planície inóspita estende-se por 21 quilômetros em linha reta e oferece ao exército judeu um trajeto rápido e visão privilegiada do alvo. Estacionados a uma distância prudente, os soldados, em número cada vez maior, assistem ao espetáculo como um fim de tarde na ­Disneylândia. A luz dos foguetes cruza suas cabeças e, em seguida, os cogumelos de fumaça se misturam à poeira do deserto. Alguns recrutas dançam, enquanto os comandantes repetem o mantra do ministro da Defesa, Yoav Gallant: o objetivo é eliminar o Hamas, se houver vítimas civis, a responsabilidade é da facção palestina. O fluxo ininterrupto nas estradas de Ashkelon e Siderot, cidades vizinhas, expande o acampamento de tanques, blindados e reservistas, à espera, quem sabe, da ordem divina de Jeová para dar início à guerra santa “por terra, ar e mar”. E Jeová, neste momento, atende pelo nome de Joe Biden. O presidente norte-americano é a única autoridade capaz de evitar uma incursão militar em Gaza e um massacre sem precedentes, mesmo para os padrões de uma região em que a carnificina é quase tão corriqueira quanto os feriados religiosos. O azar dos palestinos, no curto prazo, e do resto do mundo, no médio, é a dissociação entre o poder, o desejo e os cálculos de Biden. Em busca de uma bandeira de campanha à reeleição – o apoio à Ucrânia não se mostrou assim tão popular entre os eleitores –, o democrata agarrou-se a Benjamin Netanyahu como um náufrago diante de um pedaço de madeira flutuante. As consequências, que vão do fortalecimento do radicalismo no Oriente Médio às ameaças de atentados terroristas no Ocidente, em particular na Europa, veem-se depois. As próximas horas serão decisivas e, diante do histórico dos últimos dias, é oportuno seguir o conselho de Dante na porta do Inferno: o melhor é depositar aqui, neste primeiro parágrafo, todas as esperanças.

Biden desembarcou em Tel-Aviv antes do previsto, na quarta-feira 18, sob circunstâncias diferentes. Passados dez dias dos ataques do Hamas e diante do revide desproporcional, a unanimidade ocidental na condenação ao Hamas e na defesa do direito “moral” de Israel a uma dura resposta cedeu espaço a desconfiança e divergências mais ou menos explícitas. Os próprios Estados Unidos pareciam ter entendido a complexidade da situação. Dois dias antes da viagem, o presidente norte-americano, em raro momento de lucidez, declarou que a invasão da Faixa de ­Gaza seria um erro. Àquela altura, Antony Blinken, secretário de Estado, excursionava pelos países árabes mais influentes da região. Foram oito paradas, do Egito à Jordânia. Não se sabe o que exatamente Blinken falou e ouviu no exaustivo périplo, mas sua expressão ao voltar a Israel na segunda-feira 16 não era das melhores. O secretário posou para fotos ao lado de Galant e, antes de se trancar por nove horas com Netanyahu, reafirmou o apoio logístico no combate à milícia palestina (os EUA reforçaram a retaguarda israelense com um segundo porta-aviões, o USS Gerald R. Ford, o maior navio de guerra do mundo). Qual seria a sugestão de Washington? Haveria uma maneira de aplacar a sede de vingança dos israelenses sem uma incursão militar em Gaza? Como conter uma revolta árabe se os palestinos, encurralados e indefesos, sofrerem uma chacina?

O ataque ao hospital, que deixou um rastro de 500 mortos, provocou nova onda de indignação e revolta no Oriente Médio

O bombardeio a um hospital em Gaza na véspera da visita de Biden ampliou as incertezas. As famílias dos cerca de 500 mortos mal tiveram o direito ao luto. O atentado tornou-se a mais recente peça da batalha de informação entre as partes do conflito. A Autoridade Palestina e o ­Hamas acusam Israel e classificam o ataque de “massacre horrível”. O Hezbollah, grupo armado do Líbano, prometeu um “dia de raiva” em resposta. Uma onda de indignação e protestos espalhou-se pelo Oriente Médio e chegou à Turquia. Seis aeroportos franceses foram evacuados por ameaças terroristas, incentivadas pela proibição das manifestações em favor da Palestina. Judeus invadiram o Capitólio, em ­Washington, para protestar contra a invasão e a reação desproporcional de ­Israel. “Não em nosso nome”, diziam cartazes e camisetas. O governo Netanyahu nega o ataque ao hospital e aponta o dedo para a Jihad Islâmica. Segundo a versão israelense, ou ocorreu uma falha em um dos foguetes do grupo ou a destruição foi intencional e visava criar embaraços a Biden durante a estada em Tel-Aviv. “Aqueles que mataram brutalmente os nossos filhos estão a matar os seus próprios filhos”, acusou o primeiro-ministro. Os serviços de inteligência distribuíram um vídeo e supostas conversas interceptadas para comprovar a tese, mas as imagens têm sido contestadas pelos palestinos e seus aliados. As cenas seriam do ano passado, diz a Turquia, e sem nenhuma relação com o hospital destruído. Apesar do alto grau de desinformação, Biden e parte da mídia ocidental não pestanejaram em aceitar a versão de Israel. “De acordo com dados do Departamento de Defesa dos EUA, parece que foi feito pela outra equipe, não por vocês”, declarou o presidente norte-americano, em referência ao ­Hamas, durante uma entrevista coletiva na companhia de Netanyahu. Biden foi além. O grupo palestino, afirmou, “cometeu males e atrocidades que tornam o Estado Islâmico um pouco mais racional”. Ouviu, em troca, o agradecimento do premier israelense “pelo apoio e compromisso inabalável” no provimento de recursos à ofensiva.

Biden prometeu todo apoio a Netanyahu, culpou o Hamas pelo bombardeio do hospital e comparou o grupo palestino ao Estado Islâmico – Imagem: Haim Tzach/Gabinete do Primeiro Ministro de Israel

O apoio e o compromisso inabalável com Israel fazem dos Estados Unidos parte do problema, não da solução. Após o bombardeio ao hospital e a guerra de versões, o rei da Jordânia, Abdullah II, e o presidente da Autoridade Palestina, ­Mahmoud Abbas, cancelaram as reuniões bilaterais com o presidente dos Estados Unidos. “A agressão contínua a Gaza”, alertou o chanceler do Líbano, Abdallah Bou Habib, tende a “desencadear um incêndio que poderá consumir toda a região.” Se a intenção era aplacar os ânimos no mundo árabe, além de passar a mão na cabeça de Netanyahu, Biden produziu um fiasco. A única notícia positiva foi a liberação do Egito de um corredor “permanente” através de Rafah para a circulação de comida, água, medicamentos e equipes de socorro. Os egípcios continuam, porém, irredutíveis no bloqueio ao fluxo de palestinos e estrangeiros confinados ao sul de ­Gaza, o que impede, entre outros, o resgate de brasileiros. Tel-Aviv aceitou a criação do corredor sem abrir mão dos bombardeios. O premier israelense, por sua vez, manteve a postura ambígua. Em uma demonstração de prudência tardia, deletou do antigo Twitter o trecho de viés racista do discurso proferido, na segunda-feira 18, durante a sessão do Parlamento que chancelou o governo de “emergência nacional” e deu carta branca à operação militar. “Esta é uma luta entre os filhos da luz e os filhos das trevas, entre a humanidade e a lei da selva”, dizia a passagem removida da rede social. Apagar um tuíte não altera a realidade nem minimiza o tom belicista do sermão aos deputados do Knesset. Acusado de negligência e incompetência por conta da audácia da ação do Hamas, Netanyahu quer salvar o próprio pescoço à custa da garganta dos inimigos. “Fomos para a guerra. Nós ganharemos. Não vamos parar até a vitória”, prometeu aos congressistas.

“Esta é uma luta entre os filhos da luz e os filhos das trevas, entre a humanidade e a lei da selva”, declarou Netanyahu

De maior prisão ou campo de concentração a céu aberto, a Faixa de Gaza foi convertida em uma arapuca. Os moradores do norte foram colocados entre a cruz e a caldeirinha. Ou atendiam ao ultimato do exército israelense e fugiam para o sul ou obedeciam ao comando do Hamas e se prestavam ao papel de escudo humano na iminente batalha territorial. Não havia escolha certa. Ou melhor, não havia escolha. Israel rejeitou publicamente o apelo das Nações Unidas para a criação de um corredor humanitário e tem bombardea­do de forma indiscriminada a região, de norte a sul, de leste a oeste, inclusive as áreas por onde trafegam os comboios de civis que acataram a “sugestão” de deixar suas casas e juntar-se ao formigueiro na outra ponta do enclave. O confinamento de quase 2 milhões de palestinos em um espaço ainda mais reduzido agrava a falta de água, comida, atendimento médico, energia e higiene. Sem uma rota de fuga que ultrapasse os limites da gaiola controlada por Israel, a população está reduzida à condição de bichos à espera do abate, em uma macabra confirmação do prognóstico do ministro Gallant no início do conflito: “Estamos combatendo animais humanos e estamos agindo em conformidade com esse contexto”. A caça ao Hamas é, no entanto, um pretexto no qual nem os militares acreditam. Ao fim e ao cabo, os israelenses repetirão a história das outras guerras ao longo de 75 anos: uma agressão árabe raramente elimina a “ameaça”, mas termina invariavelmente na anexação de mais territórios pelos israelenses.

O rei Abdullah II, da Jordânia, não vai abrir as portas aos refugiados. E os EUA vetaram a resolução proposta pelo Brasil – Imagem: Ministério da Comunicação/Reino da Jordânia e Bryan R. Smith/AFP

Se o calor da vingança se aproxima por um flanco, o gelo da indiferença ergue um muro de outro. Na segunda-feira 16, em Berlim, onde se reuniu com o chanceler Olaf Scholz, Abudllah II deixou claro que os vizinhos árabes não estão dispostos a sofrer os efeitos colaterais da invasão. “Nenhum refugiado na Jordânia, nenhum refugiado no Egito. Esta é uma linha vermelha, pois esse é o plano de alguns dos suspeitos de costume para tentar criar situações de fato na região.” A cada dia sem cessar-fogo aprofunda-se o abismo a separar as tragédias. Em Israel, os registros de novos casos se tornaram marginais com o passar das horas: 1.403 mortos e 3,8 mil feridos na quarta-feira 18, quantidade não muito superior à contagem dos dias anteriores. Em Gaza, os números são, ao contrário, exponenciais: segundo o último levantamento antes do fechamento desta edição, eram 3,3 mil mortos e mais de 12 mil feridos, sem contar os 1,5 mil combatentes do Hamas eliminados, de acordo com as forças de segurança israelenses, e os 62 assassinados e 1,2 mil feridos na Cisjordânia ocupada, vítimas da vingança dos colonos judeus e da conivência das forças de segurança (reportagem de The Observer à página 21). E isso antes de um único e escasso tanque, um único e solitário soldado terem cruzado a fronteira.

Enquanto os Estados Unidos tomam partido, o resto do mundo mergulha na irrelevância e na divisão. A reunião da terça-feira 17 em Bruxelas dos representantes dos 27 países da União Europeia expôs o dissenso na comunidade, acentuada por dois episódios lamentáveis, a proposta da Hungria de cortar a ajuda humanitária à Autoridade Palestina, não só rejeitada, mas virada ao avesso (a UE decidiu triplicar o apoio), e a solidariedade acrítica e unilateral de Ursula von der Leyen, presidente da Comissão Europeia, ao governo israelense. “As ações desprezíveis do Hamas são a marca dos terroristas e eu sei que a forma como Israel responderá mostrará que é uma democracia”, afirmou Von der Leyen durante um encontro com Netanyahu, sem mencionar, para irritação dos pares, o respeito aos direitos internacionais e a necessidade de contenção na resposta militar.

O veto dos Estados Unidos à resolução brasileira em prol do cessar-fogo deixa o Conselho de Segurança de mãos atadas

O Conselho de Segurança da ONU, sob a presidência rotativa do Brasil, também está de mãos atadas. A proposta da Rússia, sem a condenação do Hamas, acabou rejeitada na segunda-feira 16, resultado previsível, dada a falta de credibilidade de Moscou após a invasão da Ucrânia. A resolução apresentada pela diplomacia brasileira, mais flexível e apoiada por 12 dos 15 participantes, igualmente deu com os burros n’água. Em busca de consenso, o Itamaraty apresentou um texto no qual abdicava de posições históricas do País. Havia uma explícita condenação “dos hediondos crimes terroristas do Hamas”, a omissão de qualquer menção a Israel e a defesa de um “cessar-fogo” humanitário. O adiamento da análise na terça-feira 17, em meio ao clamor da destruição do hospital em Gaza, era o prenúncio do que viria. No dia seguinte, os Estados Unidos anunciaram o veto à declaração do Brasil por falta de referência do direito israelense à autodefesa. Para ser aprovada, uma medida no Conselho necessita de, no mínimo, nove dos 15 votos e a concordância ou abstenção dos cinco integrantes permanentes (EUA, China, Rússia, França e Reino Unido). A China disse estar em estado de choque e decepcionada com o veto. “Foi nada menos que inacreditável.” A representante norte-americana no Conselho, Linda Thomas-Greenfield, declarou-se horrorizada e triste com a perda de vidas, mas culpou o Hamas pela crise humanitária. Gleisi Hoffmann, presidente do PT, manifestou-se no antigo Twitter: “O veto à resolução construída pelo Brasil, em diálogo com os membros do Conselho de Segurança, deixa claro quem quer a paz e quem quer prolongar o sofrimento das populações civis”. O Itamaraty prometeu, no entanto, insistir na busca de um consenso. Na quinta-feira 19, o chanceler Mauro Vieira viajou ao Egito para uma nova rodada de conversações.

Um dia antes, Vieira esteve no Senado para explicar a posição brasileira, alvo de ataques da oposição bolsonarista e do embaixador de Israel no Brasil. Classificar o Hamas como grupo terrorista, explicou o ministro das Relações Exteriores aos congressistas, não avançaria na ONU. “O Conselho de Segurança não classificou como organismo terrorista até agora. Portanto, o Brasil segue essa orientação. O mesmo serve para sanções. Não aplicamos sanções em outros países que não sejam impostas pelas Nações Unidas”. O chanceler declarou-se pessimista quanto à duração do conflito. “Será longo e com riscos por todos os lados.”

Os protestos se espalham como rastilho de pólvora no mundo árabe – Imagem: Yasin Akgul/AFP

Diante do impasse – e da interferência norte-americana –, resta à ONU emitir os tradicionais alertas e notas de repúdio. Os ataques equivalem a “uma punição coletiva”, declararam especialistas independentes da organização. “Não há justificativa para a violência que atinge indiscriminadamente civis inocentes, seja por parte do Hamas ou das forças israelenses. É absolutamente proibido pelo direito internacional e equivale a um crime de guerra”. Argumentos irrefutáveis, mas inócuos. •

Publicado na edição n° 1282 de CartaCapital, em 25 de outubro de 2023.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Arapuca’

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