Alberto Villas

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Jornalista e escritor, edita a newsletter 'O Sol' e está escrevendo o livro 'O ano em que você nasceu'

Opinião

O que viemos fazer na fronteira de Israel?

Eu tinha vinte e cinco anos de idade, os cabelos de caracóis até os ombros e me sentia um ET naquele Oriente Médio

Um soldado israelense na fronteira de Gaza, em 14 de outubro de 2023. Foto: Aris Messinis/AFP
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Cinquenta anos depois, ainda procuro, na certeza de nunca achar. Não sobrou uma fotografia sequer daquela aventura. Sobrar, sobrou. Ficaram juntas com o primeiro casamento que acabou.

Não trouxe comigo sequer um negativo.

Eu tinha vinte e cinco anos de idade, os cabelos de caracóis até os ombros e me sentia um ET naquele Oriente Médio. Só mesmo quem tem essa idade e a cabeça cheia de sonhos para chegar onde cheguei.

Depois de passarmos a noite num acampamento, ouvindo ruídos ensurdecedores de mísseis sobrevoando o céu que nos protegia, teimamos em seguir viagem.

A noite tinha sido longa e praticamente em claro. Só não foi porque Maged deixou uma lâmpada de poucas velas acesa, caso quiséssemos ir ao banheiro na madrugada, banheiro que ficava fora do acampamento, quase no mato.

Depois de um café, que na verdade foi chá com esfihas de carne de cordeiro requentadas, pegamos a estrada. Nossa camionete estava transbordando de frutas que ganhamos de presente na visita aos parentes em El Methein. Tinha pacotes de romã, de damascos maduros, de pêssegos e figos enormes, moles.

Quando paramos na fronteira do Líbano com Israel, eu tinha os cabelos presos e escondidos dentro de um boné, para não assustar a guarda fronteiriça que parecia não estar ali pra brincadeira.

Depois de um pequeno interrogatório, recolheram nossos passaportes e fizeram sinal com as mãos de que poderíamos seguir, mas não ir muito longe.

Hoje, pensando bem, acho que queria apenas pisar em terra israelense para computar no meu diário mais um país que conheci. Pisei. O chão era seco como o do nosso sertão nordestino, mas as oliveiras carregadas deixavam bem claro que não estávamos na terra do cangaço.

Demos meia volta e voltamos. Inocente, colhi uma oliva e meti na boca, acreditando que saborearia uma azeitona. Ora, estava crua e amarga, claro, não estava em conserva.

Pensava no meu passaporte nas mãos da guarda fronteiriça, se iria recuperá-lo na volta. Era um passaporte enorme, capa dura que trazia nas primeiras páginas um carimbo bem visível: não é válido para Cuba.

A paisagem não mudou muito de um lado para o outro. Sacos de areia empilhados nas curvas da estrada de terra, jipes enviesados aqui e ali, ruínas.

Recuperamos os passaportes, intactos.

Foi em Baalbeck que compramos o L’Orient-Le Jour e ficamos sabendo dos bombardeios da madrugada, dos trinta e dois mortos. O coração apertou.

Aos vinte e cinco anos, não me considerava alvo, ingenuidade pura. Circulava pelas pequenas cidades do Líbano, aguardava o sol baixar para andar pelas ruas de Beirute ao cair da tarde. Fazia fotografias, todas elas perdidas, como disse no início.

Queria ter apenas uma, aquela que, sentado numa mesa, comia o melhor quibe do mundo, debaixo de parreiras carregadas de uvas verdes, o lugar mais fresco do país.

Hoje me pergunto: afinal, o que fui fazer na fronteira com Israel naquele verão? Talvez impactado pela canção Fuga Número 2 dos Mutantes, que não me cansava de ouvir naquele exílio europeu:

Hoje eu vou fugir de casa, vou levar a mala cheia de ilusão. Vou deixar alguma coisa velha esparramada pelo chão. Vou correr num automóvel enorme e forte, a sorte, a morte a esperar. Vultos altos e baixos que me assustavam só em olhar. Pra onde eu vou? Ah… pra onde eu vou venha também.

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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