Economia
Farinha pouca
A disputa pelo FAT reabre o debate sobre o financiamento da reindustrialização


O debate sobre a destinação de parte dos recursos do Fundo de Amparo do Trabalhador para tapar buraco na Previdência, possibilidade aberta pelo governo Bolsonaro, esquentou na última semana e, de quebra, provocou a retomada da discussão sobre as condições efetivas de financiamento, pelo BNDES, da reindustrialização, programa de importância crucial. A sangria do FAT não ameaça, ao menos no curto prazo, nem os programas de apoio ao trabalhador nem o financiamento do BNDES, mas a demora em resolver os graves problemas da Taxa de Longo Prazo, criada no governo Temer, preocupa economistas e empresários.
O FAT é o destino dos recursos provenientes das contribuições para o PIS-Pasep, fundo contábil instituído em 1975 com a unificação do fundo do Programa de Integração Social (PIS) com o fundo do Programa de Formação do Patrimônio do Servidor Público (Pasep), criados em 1970. No PIS, são cadastrados os trabalhadores regidos pela Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), enquanto os empregados nas repartições públicas da União, dos estados e municípios, bem como em suas autarquias e empresas públicas, são cadastrados pelo Pasep. Com a Constituição de 1988, os recursos do PIS-Pasep passaram a ser alocados no Fundo de Amparo ao Trabalhador, para o custeio do programa de seguro-desemprego, do abono salarial, das políticas de readequação de mão de obra e de intermediação de mão de obra, sendo os dois últimos itens existentes hoje só no papel. O FAT é também a principal fonte de recursos para o financiamento de programas de desenvolvimento pelo BNDES.
Se a sangria do fundo não for estancada, o principal banco de desenvolvimento do País pode ficar descapitalizado
Após vários alertas das centrais sindicais, o ministro do Trabalho, Luiz Marinho, propôs, na segunda-feira 9, a devolução ao FAT de 80 bilhões de reais utilizados para cobrir gastos da Previdência e sugeriu que a mudança seja feita por meio da reforma tributária em andamento. O presidente do BNDES, Aloizio Mercadante, apoia a devolução. Até a terça-feira seguinte, não se sabia qual era a posição do ministro da Fazenda, Fernando Haddad, pasta que por definição não é propensa a abrir mão de receitas para equilibrar as contas públicas.
O economista Clovis Scherer, do Dieese, assessor da CUT no Grupo de Apoio ao Conselho Curador do FGTS, considera “compreensível” o governo atual buscar um superávit e avalia que, nos próximos dois anos, o repasse para a Previdência não seria algo ameaçador para o FAT. O problema, ressalta o economista, é se essa política não for revertida, porque aí terá início uma trajetória de descapitalização do FAT e do BNDES. Um processo desse tipo acabaria com a perspectiva inscrita na Constituição de 1988, de estruturar políticas de mercado de trabalho e de desenvolvimento econômico que permitam progressão social, melhora do mercado de trabalho, uma estruturação de políticas de qualificação profissional e um papel ativo do banco de desenvolvimento. “Neste caso, se desestruturaria completamente esse objetivo, a visão liberal voltaria a predominar e nós perderíamos esses instrumentos”, alerta Scherer.
Finalidade. O FAT é fundamental para os programas de seguro-desemprego e abono salarial, mas não há investimento na requalificação dos trabalhadores – Imagem: Lúcio Bernardo Jr./Ag. Brasília
As condições efetivas de financiamento da política industrial preocupam, por ser este o único caminho, mundialmente testado, para aumentar e estabilizar a criação de empregos de qualidade e generalizar os ganhos em produtividade e a inovação para o conjunto da economia, além de encaminhar a transição para uma economia verde.
A situação do BNDES, única fonte de recursos de longo prazo para investimentos e principal financiador da industrialização do País, já foi melhor. Após devolver adiantado, em cinco anos, 600 bilhões de reais em recursos do Tesouro aportados na crise financeira internacional de 2008, sob pressão dos governos Temer e Bolsonaro, quando constitucionalmente teria 40 anos para fazer essa devolução, e depois de perder 80 bilhões da sua carteira de ações, torrados pelo ex-presidente Gustavo Montezano e pelo ex-ministro da Economia Paulo Guedes, o BNDES conseguiu escapar da extinção. Sob a tutela estrita do arcabouço fiscal, vê, porém, diminuir a sua última fonte de financiamento, o Fundo de Amparo do Trabalhador, o FAT. Com receitas cadentes e saídas em expansão, esse fundo, o maior da América Latina, enfrenta déficits crescentes e corre o risco de depender cada vez mais do seu financiador, o próprio BNDES, para tapar os buracos.
Arthur Koblitz, economista que preside a associação dos funcionários do BNDES, está convencido de que o risco de desfinanciamento é real e pode comprometer o papel do BNDES para o desenvolvimento. Hoje, a Previdência está recebendo cerca de 20 bilhões de reais do FAT e, caso essa sangria permaneça constante, em termos reais, o déficit do FAT será inevitável, drenando o estoque de recursos que cabe ao BNDES para sua operação. Pelos cálculos de Koblitz, em 2025 sairão 7,5 bilhões e no ano seguinte, 24,5 bilhões. “É uma porta aberta, não tem nenhuma previsão de quanto vai de dinheiro para a Previdência, isso sai discricionariamente. Pode ser que amanhã tenha uma crise da Previdência, e justifiquem tirar todo o dinheiro deste ano”, lamenta Koblitz.
Na crise de 2008, os bancos privados só baixaram juros após o movimento de bancos públicos
O déficit chegou a tal ponto que o FAT, para arcar com as despesas do seguro-desemprego, precisa tomar recursos do BNDES. Segundo o economista, acabar com as taxas mais baixas do crédito do BNDES é central para o sistema financeiro e o bolsonarismo. “Isso é estratégico para eles. Tanto que fizeram essa reforma, que é a Taxa de Longo Prazo. E o governo Lula até agora não tem um caminho para resolver o problema. Abriram um alívio mínimo na TR, muito pequeno, mas a TLP está vigorando. Hoje, o banco tem um problema genuíno para colocar dinheiro na economia. Cria-se uma situação em que acabam minando o funding do banco. Há o risco de amanhã se reformar a TLP e não ter recursos.”
Estancar a sangria do FAT e reformar a TLP são objetivos convergentes, ressalta Koblitz. “As duas coisas estão associadas. O governo precisa fazer uma revisão da TLP, urgente, o Brasil precisa de investimento em infraestrutura e na indústria, é tarefa para ontem fazer uma revisão da TLP e proteger o funding do banco que sobrou, que é o FAT.” O economista prossegue: “Como é que, no Brasil, a precisar de tudo em termos de infraestrutura, as coisas não decolam? Crescer 3% e controlar a inflação não basta. Amanhã tem um problema na China, cai a safra agrícola, aí vão fazer o quê? Outra reforma liberal, uma nova política de tripé macroeconômico, para o País todo se adaptar a isso de novo?”
De importância determinante no financiamento da industrialização do País, o BNDES, desde o governo Temer, sofreu uma desarticulação, como apontam os economistas do banco público Marcelo Miterhof e Thiago Rabelo Pereira em artigo escrito há um ano. Os desembolsos do banco, entre 2000 e 2007, foram equivalentes a 2% do PIB. De 2008 a 2014, superaram 3%. A partir de 2017, seus desembolsos ficaram próximos a 1% do PIB. Em 2021, foram de apenas 0,74%. Além da queda da taxa de investimento, sublinham os autores do artigo, a principal causa dessa redução foi a criação da TLP, que atrelou o custo de captação do BNDES aos títulos públicos (NTN-B) de cinco anos, que pagam IPCA mais uma parcela fixa de juros, e deflagrou a gradual eliminação da vantagem de custo de seu funding institucional, o FAT.
“A lei da TLP poderia ter dado a opção aos clientes do BNDES de tomar empréstimos com custo em Selic ou taxa prefixada. Não foi feito, mas basta querer. Isso elevaria a competitividade do banco sem custo fiscal, evitaria a descontinuidade na execução dos projetos em conjunturas de turbulência de mercado e tiraria um viés que encarece o apoio a pequenas empresas, que tem prazo inferior a cinco anos”, destacam os economistas.
Apelo. O ministro do Trabalho, Luiz Marinho, quer acabar com o desvio de recursos do fundo para a Previdência – Imagem: Valter Campanato/ABR
Outro problema, sublinham, é que a TLP é procíclica, não permitindo que a atuação do BNDES reme contra a maré em momentos críticos. Sua parcela fixa cai quando a economia vai bem, o financiamento privado flui e os custos de funding são comprimidos. E sobe quando a economia tem problemas, o financiamento privado seca e encarece.
No ano passado, a Associação Brasileira da Indústria de Máquinas e Equipamentos, a Abimaq, apontou em nota técnica que “a política expansionista adotada pelo Copom entre agosto de 2019 e fevereiro de 2021, visando fazer frente à queda de demanda provocada pela pandemia, derrubou a Selic, mas não refletiu na queda da TLP, que, ao contrário, ainda em meados de 2020, iniciou uma escalada, levando ao descolamento das curvas em 6 pontos porcentuais em fevereiro de 2021. A política contracionista, iniciada em março do mesmo ano, expandiu ainda mais a diferença entre as taxas, em quase 10 pontos porcentuais. A TLP nominal, em menos de 12 meses, saltou de 7% para quase 20% ao ano, um comportamento típico de taxa de curto prazo, com instabilidade elevada e custos insustentáveis pelo processo produtivo.” Os problemas identificados pela Abimaq na TLP, de “instabilidade e falta de previsibilidade”, são o avesso dos requisitos para os investimentos de longo prazo.
Em janeiro, Mercadante disse à imprensa ter proposto à Febraban a discussão de um projeto para reduzir a TLP. Cabe observar que, no auge da crise de 2008-2009, os empresários só obtiveram taxas razoáveis em bancos privados depois de o BNDES, o Banco do Brasil e a Caixa baixarem os seus juros, de acordo com a determinação do presidente Lula. Esperar que um entendimento entre o governo e a banca privada possa resultar em um projeto para redução da TLP parece clara perda de tempo. •
Publicado na edição n° 1281 de CartaCapital, em 18 de outubro de 2023.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Farinha pouca ‘
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