Cultura
Uma voz e suas batalhas
Além de comemorar 15 anos do primeiro SLAM, a atriz Roberta Estrela D’Alva está no cinema e na Bienal


A energia vibrante de Roberta Estrela D’Alva no palco não é muito diferente da que ela exibe sentada no sofá de seu apartamento, localizado em um prédio baixo, no Sumarezinho, em São Paulo. Da janela da sala vê-se uma cidade onde o verde ainda molda a paisagem de concreto
Com os cabelos molhados de quem saíra do banho, a atriz recebeu CartaCapital para uma entrevista logo depois de sua atividade física matinal. Os braços que quase não param enquanto fala e a voz projetada na direção do interlocutor remetem imediatamente às suas performances nos palcos.
“A gente não tem como editar a voz. Eu poderia estar aqui falando mais baixo com você, né?, mas não estou”, ri, antes de se oferecer para passar um café e, em seguida, dar como alternativa um leite de aveia fabricado por uma empresa de carbono neutro. Roberta está a mil, e não esconde isso. Também, pudera.
Na segunda-feira 9, o filme Aretha no Everest, que dirigiu com Tatiana Lohmann – sua parceira também no documentário SLAM: Voz de Levante, de 2018 –, será exibido na Première Brasil, do Festival do Rio. Na quinta-feira 12, terá início a Festa Literária das Periferias (Flup), que acontece até 22 de outubro, no Rio de Janeiro, da qual é curadora.
E dentro da Flup, este ano, haverá ainda o World Poetry Slam Championship, campeonato mundial de poesia falada cuja primeira edição aconteceu na Bélgica, no ano passado. Serão, ao todo, 40 poetas dos cinco continentes. E Roberta é a organizadora desse encontro.
Além da logística complexa, que inclui desde coisas práticas como passagens aéreas e hospedagem, até especificidades culturais, há imprevistos que acabam por dizer muito sobre o estado de coisas do mundo. “Esta semana, recebi um telefonema de um poeta do Níger, dizendo que não poderia mais vir porque o país entrou em guerra”, conta, em um parêntese na lista de projetos.
Em dezembro, acontecerá o Slam BR 15 anos, em Minas Gerais, que celebra o aniversário do primeiro SLAM brasileiro. O evento chamava-se ZAP! – de Zona Autônoma da Palavra – e foi organizado e apresentado pelo Núcleo Bartolomeu de Depoimentos, grupo de teatro criado por Roberta e mais três amigos 23 anos atrás.
Dias antes da entrevista, ela tinha feito o SLAM SP, no Sesc 24 de Maio. Na ficha técnica do evento, o nome de Roberta figura na direção-geral, na idealização, na produção e na apresentação.
Seu nome também pode ser visto, neste momento, na 35ª Bienal de São Paulo, no Parque do Ibirapuera, na videoinstalação Frente 3 de Fevereiro. A frente é um grupo de pesquisa sobre o racismo que, desde 2004, realiza uma série de intervenções na cidade. De quebra, sua voz está no audiobook As Mulheres de Tijucopapo, da recém-lançada editora Supersônica, que coloca atores e atrizes para ler livros.
Nascida Roberta Marques do Nascimento, ela adotou o nome artístico D’Alva antes mesmo de ser – ou se saber – artista. Tinha 13 anos e a sugestão foi dada por uma amiga.
Bacharel em Artes Cênicas pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP) e doutora em Comunicação e Semiótica pela Pontifícia Universidade de São Paulo (PUC-SP), Roberta aproximou-se do SLAM por meio do documentário SlamNation (1998), que mostra o surgimento do movimento em Chicago (EUA), na década de 1980.
“O SLAM não dá voz”, diz. “Ele faz com que vozes habitualmente não escutadas sejam ouvidas. Nesses 15 anos, vi muita gente, no palco, conseguir dizer: ‘Para de me matar’. Também vi uma menina tímida falar sobre o abuso que sofria e, anos depois, com a voz forte, ganhar um campeonato. É a palavra da rua, do gueto, que não é necessariamente escrita. E, no Brasil, a cultura oral é considerada menor.”
“O SLAM não dá voz. Ele faz com que vozes habitualmente não escutadas sejam ouvidas”, afirma ela
SLAM, repete Roberta, é voz, é corpo e é presença: “Ele é uma atualização de uma necessidade arquetípica, que é a de falar para a sua comunidade, contar histórias, e tem um quê dos MCs, da ideia de mestre de cerimônia”.
Os saraus das periferias, simbolizados, em São Paulo, pela Cooperifa, do poeta Sérgio Vaz, são, na sua definição, primos mais velhos do SLAM. No sarau, pode-se declamar o que quiser, não importa a autoria. No SLAM, não.
Trata-se de uma competição com três regras: não se pode ler, os versos têm de ser de autoria própria e a apresentação dura três minutos. “É uma performance em que muitas coisas estão em jogo”, explica.
Sua relação com o hip-hop vem desde o nascimento do Núcleo Bartolomeu e é tema, inclusive, de sua tese, transformada no livro Teatro Hip-Hop: A Performance Poética do Ator-MC, editado pela Perspectiva para a prestigiosa coleção Estudos. “Quando surgimos, a crítica teatral não queria saber da gente porque achava que aquilo não era teatro, e o pessoal do hip-hop nem pensava em entrar num teatro para nos assistir”, recorda.
De lá para cá, não apenas a compreensão a respeito da poética das ruas mudou como as lutas identitárias fizeram com que outras presenças passassem a ser demandadas pelo próprio sistema da indústria cultural. Roberta conta, por exemplo, que fez uma participação na série Segunda Chamada, ao lado de Lynn da Quebrada: “O campo de trabalho abriu-se muito. As séries, por exemplo, como mostram Segunda Chamada e Sintonia, precisam da verve da rua”.
O outro lado dessa moeda é que, vira e mexe, ela acaba sendo chamada para emprestar seu nome, seu gênero e sua cor para projetos que não necessariamente são condizentes com seus propósitos.
“Aí eu já falo: você me quer para dirigir a série de verdade ou só para dizer que tem uma mulher preta na equipe?”, diz, com tom combativo, antes de soltar outra risada. •
Publicado na edição n° 1280 de CartaCapital, em 11 de outubro de 2023.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Uma voz e suas batalhas’
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