Economia
Palavras de Delfim
É um bom momento para recordar as críticas do ex-ministro ao sistema financeiro globalizado


Em 2019, auge da estupidez bolsonarista, meu amigo Antônio Delfim Netto concedeu sesquipedal entrevista ao programa Roda Viva, da TV Cultura. Recentemente, amigos atentos enviaram um trecho ao desatento que vos escreve. Decidi oferecer aos leitores de nossa CartaCapital a transcrição revisada das palavras do ex-ministro da Fazenda e do Planejamento.
O entrevistador pergunta: Como o senhor está vendo essa onda conservadora aí que está avançando pelo mundo?
Delfim: Deixe-me lhe dizer a verdade. Nós cometemos muitos erros. Isso começou quando a liberdade absoluta de movimento de capitais e o domínio do sistema financeiro levaram a economia mundial a uma crise devastadora, a crise de 1929. Estuporou com o mundo, veio o Roosevelt, o que é que fez? Pôs ordem na casa. As pessoas devem ler o relatório Pécora feito pelo Congresso americano sobre a crise de 1929. Vai ver que os banqueiros cometeram todos os crimes do mundo e vai ver o seguinte: banqueiro solto volta ao local do crime. Não há razão pra imaginar o contrário. Ou seja, é preciso ler o relatório.
Então (os americanos) fizeram um controle da economia e o mundo teve um desenvolvimento bastante razoável até praticamente os anos 80. Nos anos 80, os economistas começaram a desenvolver de novo uma teoria muito interessante, o mercado é perfeito.
O mercado, só ele, produz o equilíbrio, a justiça na distribuição de renda, ele cuida do mais pobre, ele na verdade está atento principalmente aos menos favorecidos, como obedece ao princípio kantiano do imperativo categórico. Ele realmente só faz o bem, faz pra nação o que gostaria que fizessem com ele. Esse negócio começou a desmontar a economia em 82, com o Reagan e com a Thatcher. O que que aconteceu? Levou de novo 25 anos pra voltar ao estado anterior de controle. Ou seja, as finanças voltaram ao estado que eram antes. Controlaram o setor real da economia.
Nós estamos vivendo isso. Você está vivendo em um mundo em que as finanças tomaram conta e produziram o maior desastre. Que é a desaparição da classe média, um bando de miseráveis de um lado e um bando de rentistas do outro. Quer dizer, você produziu um tal desequilíbrio na distribuição de renda que o sistema não se sustenta. Esta é a verdade, essa malaise que nós estamos vivendo foi produzida por nós, os economistas. Verdade. Convencemos a sociedade que somos cientistas.
Delfim inscreve seu nome entre os críticos da finança globalizada – ou seja, da abertura generalizada das contas de capital e da desregulamentação dos mercados. Em sua maioria, esses críticos costumam atribuir a relativa calmaria que prevaleceu nas três décadas posteriores à Segunda Guerra Mundial à chamada “repressão financeira”. Essa “repressão” incluía a separação entre os bancos comerciais e os demais intermediários financeiros, controles quantitativos do crédito, tetos para as taxas de juro e restrições ao livre movimento de capitais. Os bancos comandavam o crédito e estavam comprometidos, numa relação de mútua confiança, com o desempenho produtivo das empresas. As crises de liquidez, como a de 1966 nos Estados Unidos, eram raras e, em geral, dóceis às intervenções dos Bancos Centrais.
Nos países desenvolvidos, as políticas monetárias e fiscais anticíclicas do keynesianismo, mesmo bastardas, cumpriram o que prometiam, ou seja, sustar a recorrência de crises de deflação de ativos e de “desvalorização do capital”, fenômeno que assolou o capitalismo do fim do século XIX até a Grande Depressão dos anos 1930.
“Você está vivendo em um mundo em que as finanças tomaram conta e produziram o maior desastre”, disse ao entrevistador
A reiteração de intervenções de última instância dos Bancos Centrais e a geração de déficits fiscais, ao aumentar a dívida pública de “boa qualidade”, impediram a desvalorização da riqueza existente e ampliaram o peso dos ativos financeiros na riqueza total. Mudanças subjetivas (Keynes diria psicológicas) foram provocadas pelas intervenções bem-sucedidas: constitui-se uma nova agenda de convenções, antitética àquela que imperou entre o fim do século XIX e a Grande Depressão. Criou-se, na verdade, uma situação de moral hazard permanente, ou seja, um viés altista na psicologia dos investidores. Seja qual for a intensidade da flutuação da economia, as perdas devem ser limitadas, dado o valor da massa de ativos que poderia ser atingida por uma crise de liquidez e, portanto, por uma deflação de preços generalizada nos mercados financeiros.
Ironias engendradas no curso da história, as ações de estabilização do Estado favoreceram o avanço do processo de “securitização” e de desregulamentação dos mercados. Geraram, dessa forma, as condições de obsolescência da “repressão financeira”. Como bem afirmou Delfim, os critérios de avaliação dos Mercados da Riqueza voltaram a comandar as decisões de empresas, consumidores e governos. As técnicas de securitização de créditos bancários, o uso de derivativos e a intensa informatização dos mercados permitiram ampliar o volume de transações. Essas massas de capital financeiro estão concentradas sob o comando de grandes investidores institucionais. São fundos de pensão, fundos mútuos e fundos de hedge que, operando em várias praças financeiras, usam intensamente o crédito para “alavancar” posições em ativos.
Os capitais movem-se entre as economias nacionais, na busca de oportunidades de arbitragem ou de ganhos especulativos, sempre a envolver apostas quanto aos movimentos de preços dos ativos denominados nas diversas moedas. O moral hazard estrutural, de certa forma, tornou os Bancos Centrais reféns da garantia de liquidez, no caso de oscilações bruscas nos preços e suspeita de risco sistêmico. Não seria fora de propósito buscar aí as origens de processos altistas prolongados, assim como da “ganância infecciosa” que, não raro, fomenta a febre de fusões e aquisições, sempre sustentada, direta e indiretamente, pelo potente sistema de crédito.
Os episódios de euforia global e liquidez excessiva terminariam em reversões espetaculares não fossem as intervenções de última instância do Banco Central mais poderoso e de seus acólitos no centro do sistema monetário internacional. •
Publicado na edição n° 1280 de CartaCapital, em 11 de outubro de 2023.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Palavras de Delfim’
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