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Ganha a mesa?

Avança no Congresso, cercado por dúvidas, o projeto de regulação e tributação dos sites de apostas

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Aliciamento. Bauermann, um dos jogadores do esquema de manipulação – Imagem: Raul Barreta/Santos FC
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Aprovado em votação simbólica pela Câmara e prestes a entrar em pauta no Senado, o Projeto de Lei que regulamenta as apostas esportivas online tem como principal objetivo garantir uma arrecadação de impostos de 1,6 bilhão de reais só em 2024. Louvável não só por ampliar a base tributária, mas pela tentativa de disciplinar um mercado que há cinco anos grassa à meia-luz e hoje conta com mais de 500 licenças de funcionamento emitidas para as chamadas “empresas bet”, as medidas regulatórias carecem, no entanto, de clareza em importantes aspectos e trazem riscos nas esferas política, econômica, esportiva e de saúde pública.

As dúvidas são variadas. A gestão do setor ficará sob responsabilidade do Ministério da Fazenda ou do Esporte? Quem definirá as empresas aptas? Como evitar a infiltração do crime organizado? De que forma disciplinar a propaganda dos sites de apostas e minimizar consequências sociais danosas, como o vício no jogo ou o endividamento excessivo de apostadores? Como impedir a manipulação de resultados e fraudes? Por ora, conhece-se apenas a divisão dos recursos a serem arrecadados: 4% para a pasta do Esporte, 4% para a do Turismo, 2,63% para comitês, entidades desportivas e secretarias estaduais, 2,55% para o Fundo Nacional de Segurança Pública, 2% para a Seguridade Social, 1,82% para a educação e 1% para a ­Embratur. Como a maior parte do dinheiro será administrada pelos neoministros André Fufuca e Sílvio Costa Filho, alas petistas no governo classificam o reparte como “presente ao Centrão”.

O controle do setor é disputado entre o Ministério da Fazenda e o do Esporte

Fufuca não atendeu aos pedidos de entrevista de CartaCapital, mas falou em público sobre suas expectativas: “Queremos ampliar o número de secretarias e uma delas será voltada aos jogos. Há o projeto de ampliação e fortalecimento do ministério e contamos com a sensibilidade do Executivo para levá-lo adiante”. Embora não esteja definido em qual ministério ficará o comando do setor, a ­Fazenda dá sinais de que pretende continuar à frente do processo. “Para poderem operar, as empresas deverão estabelecer sedes no Brasil. Vamos intensificar a fiscalização a partir da exigência da entrega de documentos, para evitar a entrada de empresas de fachada. Vamos solicitar informações detalhadas aos agentes regulados, assegurando a confidencialidade dos dados. Infrações acarretarão multas e a exclusão da empresa, além de, quando for o caso, denúncia aos órgãos competentes”, afirma José Francisco Manssur, assessor especial do ministro Fernando Haddad e cotado para o comando da Secretaria de Prêmios e Loterias, ainda a ser oficializada.

A Fazenda, segundo Manssur, prepara uma portaria regulatória da publicidade de sites de apostas, na tentativa de conter abusos. Pesquisa da rede varejista Assaí dimensiona o potencial de vício da jogatina. Segundo o levantamento, clientes das classes C, D e E afirmam gastar até 5% do orçamento em jogos online como forma de complemento de renda mensal. “A pesquisa mostra que as apostas atualmente tiram uma parte da renda desse consumidor. Os clientes nessa faixa reduziram o volume de compras”, diz Belmiro Gomes, CEO da empresa. Outra pesquisa, divulgada pela Opinion Box e realizada em um universo de 1.581 apostadores, captou comportamento semelhante: 60% daqueles que enxergam a “possibilidade de complemento de renda” pertencem a estratos mais pobres. “As apostas não são investimento, de forma alguma, e não podem ser consideradas como renda extra. Não trazem nenhuma perspectiva de retorno do que foi investido. São um jogo”, explica a educadora financeira Aline Soaper.

Onipresença. Os sites “bet” dominam o patrocínio do futebol – Imagem: ubens Chiri/Perspectiva/São Paulo FC

O gosto do brasileiro pelos jogos de azar foi medido há dois anos pelo IBGE. O gasto médio mensal em apostas de todos os tipos, constatou o instituto, é de 14,16 reais, superior ao dispêndio com arroz (12,79 reais), feijão (5,92 reais) e macarrão (4,45 reais). No quesito apostas online, os números são impressionantes e justificam a necessidade de regulação do setor. Segundo o Banco Central, apenas no primeiro trimestre de 2023 as remessas feitas a partir do Brasil para sites “bet” no exterior atingiram 2,7 bilhões de reais. Por conta dessas estatísticas, há no governo quem estime uma arrecadação anual com o imposto de, aproximadamente, 12 bilhões de reais. “A previsão de arrecadação no PLOA é conservadora. Com o mercado devidamente regulado, acreditamos em um crescimento substancial desses valores nos próximos anos”, diz Manssur.

Para o psiquiatra Fernando Tenório Nunes, que atende no Rio de Janeiro e Maceió, é fundamental limitar a propaganda e educar os apostadores. “Podem ser adotados mecanismos nas casas de apostas para detectar aqueles com comportamento de risco, estabelecer limites de gastos e indicar aos jogadores sinais de alerta de dependência.” Também é possível, diz o médico, criar grupos confidenciais de apoio e aconselhamento aos jogadores, sobretudo os mais jovens. “Estados Unidos, Canadá e Reino Unido investem na educação continuada a esse grupo prioritário. Noções financeiras também podem ajudar esses jovens a não cair em golpes e promessas de ganhos irreais.”

Estima-se uma arrecadação anual de 12 bilhões de reais com a taxação

Nos ambulatórios, conta o psiquiatra, é visível o aumento de casos de ludomania. “O perfil que chega ao meu consultório é majoritariamente de homens jovens que buscam nas apostas um ganho extra. Os sonhos de uma vida melhor e mais interessante com acesso a bens permeiam os primeiros impulsos para jogar. Alguns se lançam de maneira mais compulsiva e outros perdem a mão ao longo do tempo.” Há uma incidência maior de comportamentos compulsivos em pacientes com transtornos mentais, acrescenta Nunes. “Transtorno do Déficit da Atenção e Hiperatividade, Transtorno Afetivo Bipolar e Transtornos Ansiosos podem estar relacionados a maior vulnerabilidade para compulsões em jogos de azar.”

Disputa. Fufuca, novo ministro do Esporte, espera ficar com a secretaria que irá fiscalizar os sites de apostas – Imagem: Tom Costa/MJSP

Outro desdobramento necessário após a regulamentação das empresas “bet” é avançar na discussão sobre se é eticamente razoável o Brasil ter 51 times de futebol, entre os 60 que compõem as três primeiras divisões, patrocinados por sites de apostas. Mesmo que não exerça poder diretamente sobre os clubes, essa presença certamente facilita o envolvimento de jogadores na manipulação de resultados. Em sua segunda fase no Ministério Público de Goiás, a Operação Penalidade Máxima sacudiu o futebol ao expor a facilidade no aliciamento de atletas por esquemas fraudulentos. Em consequência, a ­Fifa acaba de ampliar as sanções a 11 jogadores brasileiros, um time completo, anteriormente punidos pelo Superior Tribunal de Justiça Desportiva. Três atletas – Ygor Catatau, Matheus Philippe e Gabriel Tota – foram banidos do futebol por toda a vida. Também tiveram as punições estendidas ao âmbito mundial Moraes e Paulo Miranda (720 dias de suspensão), André Luiz, Matheusinho e Paulo Sérgio (600 dias), e Eduardo Bauermann, Fernando Neto e Kevin Lomónaco (360 dias).

Para Massimiliano Montanari, CEO do Centro Internacional de Segurança Esportiva (ICSS, na sigla em inglês), os casos de fraude descobertos no Brasil seguem um padrão mundial. “A regulamentação das apostas esportivas online é um passo primordial na luta contra a manipulação de resultados em qualquer jurisdição. Este é um problema que afeta o futebol nos mais diversos países e em todos os continentes. Para enfrentá-lo é preciso adotar uma abordagem global combinada com medidas nacionais sólidas de investigação, detecção e prevenção.” •

Publicado na edição n° 1279 de CartaCapital, em 04 de outubro de 2023.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Ganha a mesa?’

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