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Inspiração vinda do autoexílio

Marcia Tiburi transforma em ficção a experiência de ter deixado o Brasil após ter sido perseguida pela extrema-direita

Inspiração vinda do autoexílio
Inspiração vinda do autoexílio
Filósofa e ativista feminista, Marcia está de volta ao País
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Logo no começo de Com os Sapatos Aniquilados, Helena Avança na Neve, o narrador comenta que “a arte, seja a pintura ou a poesia, ajuda a suportar o horror da vida, mas também porque, sendo feita a partir do horror da vida, a arte traz uma sabedoria que não se encontra em jornais ou na publicidade que se torna a cada dia o texto oficial do mundo”.

A autora destas frases, a filósofa e artista visual Marcia Tiburi, de 53 anos, concorda com seu narrador. Embora a filosofia e o ativismo feminista sejam as facetas mais conhecidas de seu trabalho, Marcia tem outros seis romances publicados. Ela diz, como também já disse um dia ­Simone de Beauvoir, que nesses livros encontra uma forma de filosofia.

“Na literatura, é possível trabalhar a sensibilidade e criar uma proximidade com o leitor, coisa que não costuma acontecer com o ensaio, um formato mais reflexivo e racional”, diz, a CartaCapital. Com os Sapatos Aniquilados… toca num tema caro ao Brasil: o feminicídio. O tom não é, porém, o da denúncia social. ­Marcia aborda o tema por outra chave, que ela própria, brincando, define como uma “vingança literária para fazer refletir”.

Helena é uma brasileira misteriosa que se muda para Paris e aluga um quarto na casa de Chloé, uma feminista francesa bastante ativa. A narrativa alterna passado e presente das duas mulheres, em histórias marcadas pela violência, mas também pelo levante delas e de outras que as cercam.

Marcia começou a escrever o livro em 2020. Um ano antes, tinha deixado o Brasil por ter recebido ameaças de morte de extremistas de direita que se incomodaram com dois de seus livros anteriores, Sob Meus Pés, Meu Corpo Inteiro (2018) e Como Conversar Com um Fascista (2015). A casa dela chegou a ser invadida durante a sua ausência.

Com os Sapatos Aniquilados, Helena Avança na Neve. Marcia Tiburi. Nós (304 págs., 69 reais)

Após passar uma temporada na fundação City Asylum, em Pittsburg (EUA), que acolhe e protege escritores ameaçados, Marcia instalou-se em Paris. E foi lá que, já sob a pandemia, começou a escrever o novo romance. Em 2021, enquanto escrevia, acompanhou a distância o Levante Feminista Contra Feminicídio, Transfeminicídio e Lesbocídio, movimento lançado no Brasil.

“É um romance engajado, de ativismo. Percebi que a violência contra as mulheres une as mulheres, e escrevi esse livro para falar sobre isso. Percebi que poderia ajudar”, diz. O exemplar distribuído para a imprensa vinha embalado em um saco de penas em que se lia a frase “o patriarcado está morto”.

Marcia voltou ao Brasil no fim de julho, coincidentemente no dia em que o ex-presidente Jair Bolsonaro foi declarado inelegível: “Foi meio mágico esse dia. Tudo acontecendo ao mesmo tempo. Agora moro aqui de novo, o Brasil é a minha casa”.

Mas ela, de forma enfática, como boa ativista que é, diz só ter voltado porque o governo Bolsonaro foi derrotado nas urnas, “e isso é mérito do povo brasileiro, e de Lula como político”. Mas ela não se mostra totalmente otimista. “A extrema-direita segue em ação e o ataque às mulheres na política é algo orquestrado”, diz.

Bastante ativa nas redes sociais e presente em muitos debates, Marcia está certa de que vivemos uma guerra cultural. “Há deputadas e deputados antifascistas, mas acho que há negligência por parte do governo, e isso é perigoso. O trabalho da extrema-direita é ocupar espaço cultural e mental. E eles fazem isso desde 2014, com o surgimento do Movimento Brasil Livre (MBL), e tem tudo para se tornar mais forte nas eleições de 2024. Os extremistas de direita não dormem em serviço.” •


VITRINE

Por Ana Paula Sousa

As primeiras linhas de Um, Nenhum e Cem Mil (Penguin/Companhia das Letras, 240 págs., 54,90 reais), de Luigi Pirandello, são daquelas que, quem lê, não mais esquece. Nelas, se dá a revelação que conduzirá o protagonista a uma crise existencial: seu nariz tem uma leve queda para a direita.

Os textos de Sobre a Certeza foram produzidos na última das três fases da obra de Wittgenstein e, como se descobre na introdução (Fósforo, 328 págs., 89,90 reais), foram editados a partir de manuscritos. Em seu exercício, o filósofo mostra o quão incapaz é a linguagem de sustentar certezas.

Na poesia de Maria Beber, nascida em Duque de Caxias, “mesmo” pode ser “mermo” e o pronome “tu” pode concordar com a terceira pessoa do singular. A oralidade, em Veludo Rouco (Companhia das Letras, 104 págs., 69,90 reais), está enlaçada ao amor, à memória e às miudezas do cotidiano.

Publicado na edição n° 1279 de CartaCapital, em 04 de outubro de 2023.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Inspiração vinda do autoexílio’

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