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Barril de pólvora

Em Lampedusa, toma forma a batalha europeia entre acolher ou expulsar os migrantes pobres

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Desespero. A inundação na Líbia empurra uma nova leva de migrantes à arriscada travessia pelo Mediterrâneo – Imagem: Zakaria Abdelkafi/AFP
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Já se passaram quase dez anos desde que José Manuel ­Barroso pronunciou as palavras: “Nunca mais”. Elas foram ditas no momento em que o então presidente da Comissão Europeia observava centenas de caixões enfileirados, muitos deles com corpos de crianças e adolescentes, no hangar do aeroporto de Lampedusa, a ilha no Sul da Itália em cuja costa eles tinham morrido num naufrágio alguns dias antes, em 3 de outubro de 2013.

Oito dias depois, 268 migrantes, entre eles cem crianças, morreram no mar entre Malta e Lampedusa. “Nos lembramos bem das famosas palavras de Barroso”, disse Vito Fiorino, empresário que resgatou 47 náufragos na tragédia de 3 de outubro. “Ele disse que ‘isso nunca mais deveria acontecer’ numa costa europeia. Mas nada mudou em dez anos. As tragédias continuam.”

Um sentimento familiar de desilusão tomou conta dos moradores em ­Lampedusa, ilha com cerca de 6 mil habitantes, quando ouviram as palavras de ­Ursula von der Leyen, atual presidente da Comissão Europeia, durante sua rápida visita à primeira-ministra italiana de extrema-direita, Giorgia Meloni. ­Lampedusa, durante anos o primeiro porto de escala para quem fazia a perigosa viagem marítima a partir do Norte da África, voltou a ser o centro das atenções depois que mais de 11 mil refugiados chegaram à ilha no espaço de seis dias. O aumento causou confusão na União Europeia. Alguns reforçaram os controles em suas fronteiras com a Itália e outros se recusaram a ajudar.

Numa declaração que facilmente caberia na boca de Meloni, Von der Leyen defendeu a repressão aos contrabandistas e a rápida implantação de um polêmico acordo de 105 milhões de libras feito com a Tunísia, para conter o fluxo de migração irregular. Referindo-se a um “plano de dez pontos”, prometeu deportar rapidamente aqueles cujos pedidos de asilo são rejeitados, e não hesitou, diante do plano de Meloni, criar mais centros de detenção pré-deportação – conhecidos por suas condições deploráveis – e manter os presos ali por até 18 meses. “Nós decidiremos quem vem para a Europa e em quais circunstâncias, não os contrabandistas”, afirmou.

Fiorino achou as palavras assustadoras. “Que direito temos de escolher quem pode ficar e quem deve sair? Lamento se o que vou dizer é controverso: mas só podemos aceitar gente com cabelos loiros e olhos azuis, e não aquelas que durante anos fugiram de situações terríveis na África?”

Com mais de 130 mil refugiados a desembarcar nas costas italianas até agora neste ano, Meloni, uma das principais protagonistas do acordo com a Tunísia e que prometeu não permitir que a Itália se tornasse “o campo de refugiados da Europa”, apelou aos Estados membros para trabalharem em conjunto para encontrar “soluções sérias e concretas”.

Mas, se a passagem do tempo não mudou a situação em Lampedusa, também não produziu políticas viáveis. “Penso que é tempo de percebermos que os últimos 20 anos de políticas de imigração, em Bruxelas e nos demais países, não corresponderam às expectativas de qualquer tipo de governo”, disse Andrea Menapace, líder da Coligação Italiana para Liberdades e Direitos Civis e Migração Aberta. “Os governos anteriores prometeram que acordos com os países do Norte da África diminuiriam a imigração, mas isso não aconteceu. Prometeram-nos uma repressão aos contrabandistas e isso não aconteceu.”

Apesar das promessas dos últimos dez anos, a ilha italiana continua a ser o epicentro da tragédia humanitária

Meloni e Von der Leyen foram acusadas de explorar Lampedusa para fazer campanha política antes das eleições parlamentares europeias do próximo ano. “Acho isso repreensível”, disse a eurodeputada holandesa Sophie in ‘t Veld. Para Juan Fernando López Aguilar, presidente da comissão de liberdades civis do Parlamento Europeu, Von der Leyen parecia ter sido “melonizada”. Embora fosse correto figuras importantes da comissão visitarem a ilha, acrescentou o parlamentar, ele se declarou “intrigado e chocado” com as declarações feitas durante a viagem. “Para mim, este é um manual para as eleições europeias”, acredita Menapace. “Von der Leyen procura expandir sua candidatura… enquanto os números mais elevados de refugiados são vantajosos para Meloni, que desempenha bem o papel de vítima.”

O plano de dez pontos de Von der Leyen incluía fornecer apoio à Itália no processamento de novas chegadas e, ao mesmo tempo, “explorar opções para expandir as missões navais existentes no Mediterrâneo”. O último ponto referia-se ao alargamento dos canais de entrada legal na União Europeia. “Apreciei muito que ela tenha tirado isso da bolsa”, disse Christopher Hein, professor de Leis e Políticas de Imigração na Universidade Luiss, em Roma. “Só que, mais uma vez, não houve números ou indicações concretas de onde, para onde, em que prazo, com que base jurídica, nada parecido… ouvimos isso há anos, mas nada aconteceu. O mesmo com os outros pontos.”

Sem que até agora nenhum dinheiro tenha mudado de mãos, o acordo com a Tunísia ainda não produziu quaisquer frutos. Em vez disso, as partidas aumentaram 70% desde a sua assinatura, em julho. Além das preocupações com os direitos humanos, foram levantadas questões sobre a legalidade do acordo. “Esta foi uma ‘iniciativa solitária’ da comissão, sem mandato do conselho”, disse Hein. A Itália e a União Europeia têm um acordo semelhante com a Líbia, onde há denúncias de graves violações dos direitos humanos em campos de detenção, incluindo espancamentos, torturas e violações. Outros relataram assassinatos nos campos e, como disse um jovem do Sudão em Lampedusa, há gente morrendo de doenças e de fome.

À medida que a UE se debate com a imigração, espera-se que as inundações devastadoras na Líbia e o terremoto no Marrocos provoquem nova onda de fugas. Estima-se que mais de 2 mil tenham morrido durante a viagem pelo mar até agora neste ano.

Embora não exista uma solução mágica, Hein alertou que a UE precisa ter cuidado ao fechar acordos com os países do Norte da África. “Trabalhei nesses países e conheço muito bem o clima”, disse. “Eles viveram o colonialismo europeu e são muito sensíveis a tudo que cheira a intervenções coloniais: ‘Nós lhes pagamos e vocês têm de fazer isto e aquilo’. Tenho a impressão de que, às vezes, entre os políticos, sejam eles nacionais ou europeus, não há muita sensibilidade em relação a isto, e precisam ter muito cuidado para não dar a impressão de que a UE rica paga aos ‘irmãos pobres de lá’ para fazerem o trabalho sujo.” •


Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves.

Publicado na edição n° 1279 de CartaCapital, em 04 de outubro de 2023.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Barril de pólvora’

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