

Opinião
O sangue como mercadoria
Uma PEC em trâmite no Senado prevê que a iniciativa privada volte a coletar e processar o plasma humano e os hemoderivados


Em 1984, quando comecei a realizar meus primeiros plantões em pronto-socorro, ainda como estudante de Medicina, deparei-me com uma realidade que me chocou profundamente.
Pacientes eram atendidos na emergência, com quadro de anemia aguda, motivado por sucessivas doações de sangue. Chegavam em situação gravíssima, após doações diárias. Alguns tinham feito várias em um mesmo dia. Eram pessoas pobres, em situação de desespero, que vendiam seu sangue em troca de alguns trocados, um sanduíche e um copo de suco adocicado.
Até 1988 era permitida, no Brasil, a comercialização de sangue e muitos donos de bancos de sangue fizeram fortunas explorando pessoas miseráveis.
A situação mostrou-se ainda mais grave e preocupante quando se descobriu que a transmissão e a disseminação do HIV, além de doenças como Chagas, sífilis e algumas hepatites, também ocorriam por meio de transfusões.
Esta situação deveria ter se extinguido com a promulgação da Constituição Federal de 1988, uma vez que o artigo 199, parágrafo 4º, proíbe todo tipo de comercialização. A lei estabelece, ainda, que lei específica deve regulamentar as condições e os requisitos que facilitem a remoção de órgãos, tecidos e substâncias humanas para fins de transplante, pesquisa e tratamento, bem como coleta, processamento e transfusão de sangue e seus derivados.
Como acontece com outras questões que envolvem interesses privados, esse artigo foi regulamentado apenas em 2001, com a aprovação da Lei 10.205/2001, a chamada “Lei do Sangue”, apresentada por Sergio Arouca, que proibiu a doação gratificada de sangue e conceituou a remuneração dos serviços através da cobertura de custos de processamento pelo SUS.
A partir daí, com a instituição da Política Nacional de Sangue e Hemoderivados, que regulamentou a atenção hemoterápica e hematológica, importantes investimentos foram feitos para controle de qualidade e consolidação da rede pública de Hemocentros. Com isso, o Brasil passou a ter, sob gestão do SUS, um sistema de sangue e hemoderivados de alta qualidade e segurança, reconhecido internacionalmente como uma referência por sua excelência.
Para completar, a criação da Hemobras, em 2004, estatal vinculada ao Ministério da Saúde, permitiu ampliar o acesso, por meio da produção nacional, com qualidade internacional, de medicamentos derivados do plasma. Muitos interesses foram e continuam sendo contrariados. Agora, corremos o risco de voltar aos tempos da barbárie.
Um projeto que tramita no Senado pretende alterar a Constituição (PEC 10/2022) e, se aprovado, permitirá a comercialização de plasma sanguíneo. A PEC acrescenta um quinto parágrafo ao artigo 199 autorizando a iniciativa privada a coletar e processar plasma humano. É bom destacar que, ao se autorizar a comercialização de sangue humano, abre-se uma janela para a comercialização de tecidos humanos, também proibida pela Constituição.
Como destaca o manifesto da Frente Pela Vida, “em um tempo passado e sombrio, a crise econômica, o desemprego e a fome faziam com que pessoas em absoluto estado de pobreza vendessem o próprio sangue para aplacar a miséria econômica, reforçando uma outra miséria, a humana”. Por isso, entidades da sociedade civil, de gestores e movimentos sociais que defendem o SUS se mobilizam contra a aprovação da PEC 10/2022. A OMS recomenda que o sangue seja doado de forma voluntária e não remunerada, porque sua comercialização coloca em risco a saúde de pacientes e doadores.
Se aprovada, a PEC 10/2022 poderá também provocar uma grande concorrência pelo plasma brasileiro e inviabilizar a Hemobras, que se encontra em fase final de conclusão da fábrica de hemoderivados e inaugura a fábrica de Fator VIII recombinante ainda este ano. Esta ameaça surge justamente quando, além de entregar os produtos necessários para o SUS, a estatal está se consolidando e gerando recursos para investimento próprio e dividendos para a União.
A Hemobras, cujo cliente prioritário é o SUS, tem por objetivo garantir a autossuficiência do País em relação a sangue e hemoderivados, atuando alinhada ao Poder Público para garantir atenção hemoterápica e hematológica de forma efetiva e segura, reduzindo a dependência externa do Brasil.
O setor de derivados do sangue e biofármacos é estratégico por ampliar o acesso da população a medicamentos essenciais à vida de milhares de pessoas com hemofilia, além de pacientes de imunodeficiências genéticas, cirrose, câncer, Aids e queimaduras, entre outras doenças.
A PEC 10/2022, portanto, é um desserviço à sociedade, um enorme retrocesso que merece o nosso repúdio. •
Publicado na edição n° 1278 de CartaCapital, em 27 de setembro de 2023.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘O sangue como mercadoria’
Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.
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