Artigo
Contra a política da mentira
O Observatório da Desinformação debruça-se sobre a emergência social causada pelas Fake News


O processo de desinformação é um esforço de cooptar indivíduos, atenções, mobilizações sociais, nosso tempo de vida para pautas que de fato não estão em consonância com a realidade brasileira, seja cultural ou política. No Brasil, durante o processo eleitoral de 2018, que elegeu Jair Bolsonaro presidente da República, assistimos à formação de um processo sistematizado de produção e disseminação de notícias falsas, de mentiras – heranças daquela época, o kit gay e a mamadeira de piroca não nos deixam mentir.
Naquele momento de polarização política pós-ruptura institucional com o impeachment de Dilma Rousseff em 2016 (que todos hoje sabem que se tratava de um golpe), a imprensa e muitos especialistas ainda tomavam o processo de desinformação que se espalhava pelas redes sociais como movimento espontâneo e aleatório, quase inocente. Passadas as eleições, Bolsonaro eleito, o que era manifestação aleatória foi adquirindo status de ação governamental, que se consolidou na atuação do gabinete do ódio (com sede no Palácio do Planalto) e nas lives semanais do então presidente da República.
Chegamos assim a 2020 e, durante a pandemia de Covid-19, milhares de brasileiros recorreram a remédios para piolhos e vermes, chás, gargarejo com alho e água para combater o vírus, ao mesmo tempo que duvidavam das vacinas e questionavam as recomendações de isolamento social e uso de máscara
Atravessamos um longo inverno e vimos chegarem as eleições de 2022, quando um poderoso ecossistema de desinformação chacoalhou as instituições brasileiras e quase solapou a nossa frágil democracia. Esse ecossistema era alimentado pelo aporte financeiro e pela sustentação política do Poder Público e por setores do empresariado, o que garantiu a produção profissional de conteúdo falso e enorme capilaridade para disseminar as mentiras em larga escala. No debate eleitoral daquele ano, assistimos à discussão sobre um pretenso demônio que habitava o Planalto tomar lugar da discussão urgente sobre a fome que atingia então 33 milhões de brasileiros. A desinformação, portanto, estava enraizada no Brasil – e o dia 8 de janeiro de 2023 era a prova cabal desse enraizamento.
A máquina de distorção dos fatos não é movimento espontâneo e aleatório, quase inocente
Nesse contexto caótico e sombrio, entender as dinâmicas da “Ideologia da Realidade Brasileira”, como propõe Michel Debrun, é um trabalho reflexivo e proativo em que estivemos envolvidas, considerando suas proposições como lugar privilegiado para pensar as conjunturas brasileiras e/ou o Brasil em tempos de fake news. É novidade que seres humanos mentem, distorcem os fatos, ocultam informações? Não é. Mas o modo de expansão com suporte tecnológico, midiático e algumas vezes governamental (como temos visto em nosso país) é uma dinâmica que precisamos compreender cada vez melhor, por isso, nós duas nos debruçamos sobre essas articulações há algum tempo.
Sabemos que há, em outros países, tentativas análogas de fazer circular desinformação para fins espúrios e que, muitas vezes, essas iniciativas não vigoram. Nesse sentido, a capacidade de circulação e engajamento que a desinformação no Brasil alcança tem muito a ver com o nosso perfil identitário, e para considerarmos isso, compartilhamos a primeira tese de Michel Debrun (1990): “A identidade nacional brasileira não é uma só. As suas dimensões política e cultural, em particular, não têm caminhado juntas. Nem remetem a um mesmo espírito, à diferença do que acreditava Gilberto Freyre, para quem a tolerância mútua que reina na área sociocultural das relações humanas devia se traduzir, com naturalidade, por igual tolerância na área política: o liberalismo nosso não devia nem podia se fundamentar, como o liberalismo anglo-saxônico, na competição onde ganha o melhor ou o mais astuto, mas na conciliação harmoniosa das diferenças. Não é bem assim: existe de fato, no Brasil, uma forma política da conciliação, mas esta, longe de se definir pela tolerância mútua, descansa na cooptação mais ou menos forçada do menos forte pelo mais forte”.
Nesse contexto e em profundo diálogo com a realidade brasileira – complexa, plural e muito desafiadora – que nos propusemos a compreender o fenômeno da desinformação no Brasil. Nesse mergulho por águas bem turvas, que sempre fizemos em conjunto desde a pandemia, a nossa opção para responder às inúmeras inquietações sempre foi a busca pelo diálogo amplo, com todos os públicos. Desse empreendimento a quatro mãos nasce, agora, o Observatório da Desinformação, experiência inédita no Brasil. Ele é construído a partir da constatação de que vivemos uma emergência social com a desinformação sistematizada. Portanto, nós nos organizamos para nos articular com quem também se preocupa com uma vida democrática e com o acesso à informação plural no País.
O combate à desinformação não se faz na solidão. Este observatório surge articulado com a Representação da América Latina da Aliança Unesco para Letramento Midiático, Informacional e Diálogo Intercultural e com a rede de educação superior da Unesco–Unaoc Unitwin de Letramento Midiático Informacional e Diálogo Intercultural. A Unicamp oferece as condições de trabalho para desenvolvermos as atividades desse projeto com nossos colegas, como um lugar de reflexão plural e aberto para a interlocução. E assim pudemos começar. Nessa inauguração, ainda é válido convocar todos os cidadãos para lutar pela informação e pela educação de qualidade, uma convocação necessária que não foi feita mesmo diante da emergência social que estamos vivendo.
Duas mulheres, quando resolvem cuidar de sua casa, de sua região, de sua comunidade, podem fazer muita coisa. Podem, de fato, “pegar o bicho pelo rabo” e encaminhar resoluções para questões que não foram devidamente pautadas. Neste caso, podemos contar também com pesquisadores parceiros para constituir a base reflexiva nas universidades e comunidades envolvidas, com portais e amigos jornalistas. E contamos também com o leitor que, esperamos, virá conosco nesta aventura pela democracia.
O observatório já está no ar: www.observatoriodadesinformacao.org. •
*Cláudia Wanderley é pesquisadora permanente do CLE/Unicamp; Eliara Santana é pesquisadora associada do CLE/Unicamp.
Publicado na edição n° 1278 de CartaCapital, em 27 de setembro de 2023.
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