Mundo
Mágoas passadas?
A classe trabalhadora de Ohio sente-se abandonada pelos democratas. Biden pode reconquistá-la?


David Cox tenta convencer seus afiliados de que Joe Biden fez mais pela classe trabalhadora do que qualquer outro presidente dos EUA, ao menos durante as décadas em que atuou como trabalhador da construção civil e líder sindical no oeste de Ohio. Cox não tem certeza, porém, se os trabalhadores sindicalizados querem ouvir isso, sobretudo num estado onde a marca democrata estava em declínio muito antes de Donald Trump vencer em 2016 e, quatro anos depois, reforçar sua votação por lá.
“Biden tem sido ótimo”, diz o sindicalista, destacando a legislação para revitalizar a indústria e investir em tecnologia que criou muitos novos empregos na construção. “Resta saber se isso trará de volta aqueles que perdemos para Trump. Mesmo que não estejam inclinados a votar em Biden, talvez eles fiquem em casa e não votem. Isso é meia vitória.”
Metalúrgico e diretor do conselho setorial da construção em Dayton, grupo sindical que representa milhares de trabalhadores, Cox tem bons motivos para desconfiar. Ohio já foi um estado indeciso tão crucial que os presidenciáveis se embolavam para conquistar eleitores. A partir de 2020, os financiadores nacionais do Partido Democrata decidiram que não valia a pena investir muito na luta e deixaram Ohio fora da sua lista de alvos, cedendo espaço a Trump e aos republicanos. O único democrata a conquistar um cargo estadual em mais de uma década é o senador americano Sherrod Brown, que deverá enfrentar uma dura luta pela reeleição no próximo ano.
Em Dayton, cidade do condado de Montgomery, o voto democrata já foi forte o suficiente para ajudar a compensar as perdas em outras partes do estado. Trump venceu na província em 2016 por um triz. Biden o superou quatro anos depois, por apenas 2%. Os responsáveis do Partido Democrata parecem ter reconhecido o erro de deixar Ohio escapar, mas há desacordo sobre as causas e como reagir, mesmo que vejam razões para otimismo.
O estado votou duas vezes em Trump, mas nem sempre apoiou os republicanos
Os democratas ficaram entusiasmados com o tamanho da vitória no referendo sobre uma proposta republicana para dificultar alterações na Constituição de Ohio. A medida visava impedir, em uma votação prevista para novembro, a consagração do direito ao aborto na legislação estadual. Mas foi derrotada por 57% a 43%, com uma participação excepcionalmente elevada. Apesar disso, democratas veteranos alertam que há um longo caminho a percorrer em Ohio para retomar o terreno perdido.
Pela lógica, Biden deveria estar numa posição relativamente forte. A economia e os números do emprego estão crescendo, apesar de a inflação ter subido muito. Mas uma pesquisa eleitoral, divulgada pela CNN na quinta-feira 7, revelou Biden empatado nas intenções de voto com Trump e todos os demais pré-candidatos republicanos, com exceção da ex-governadora da Carolina do Sul, Nikki Haley, 6 pontos à frente do atual presidente.
Há boas razões para sermos cautelosos em relação a esses números mais de um ano antes das eleições. Eles são, porém, mais um lembrete aos democratas das dificuldades para convencer os eleitores em regiões como o oeste do Ohio de que Biden tem sido bom para eles. A economia pode parecer mais forte no papel, mas muitos americanos não se sentem bem em relação aos democratas ou ao país profundamente fraturado – mesmo que não estejam passando por dificuldades financeiras no momento.
Kim McCarthy, presidente democrata do condado de Greene, ao leste de Dayton, disse que seu partido luta para refutar a ideia de que, em nível nacional, não está comprometido com os trabalhadores. “As pessoas reconhecem que o governo está falhando conosco como sociedade, como nação. Sou da Austrália, e acho que uma das coisas mais profundas que percebi nos meus 25 anos de vida aqui é que o governo dos EUA não se importa comigo e com a minha vida”, disse ela. “Quando me mudei para cá, desisti de um governo que estava preparado para me apoiar e garantir que eu tivesse as ferramentas para viver da melhor maneira possível. Acho que os americanos, mesmo sem terem vivido em outro país, acabam entendendo essa diferença. Trump, é claro, não é a resposta para esse problema.”
Cox avalia que o Partido Democrata, nacional e localmente, tem grande parte da responsabilidade pela perda de Ohio. “Os trabalhistas sentem que foram deixados de fora”, afirma. Ele acrescenta que os democratas sofreram danos em Dayton desde que Bill Clinton assinou o Acordo de Livre Comércio da América do Norte, o Nafta, e milhares de postos de trabalho em fábricas acabaram migrando para o México depois de 1994. “Esta era uma cidade da General Motors. Cada família tinha alguém que trabalhava lá. Após o tratado, a GM praticamente nos abandonou e mudou-se para o México. Na área de Dayton, é uma questão delicada até hoje. As pessoas venderam casas, venderam seus barcos, suas motocicletas.”
Gratidão. Os trabalhadores se sentiram apoiados por Trump quando ele adotou medidas para proteger a indústria nacional – Imagem: Arquivo/Casa Branca e Andrew Caballero-Reynolds/AFP
O legado é visível em edifícios industriais abandonados e espaços abertos onde antes existiam fábricas. Dayton perdeu um quarto de sua população desde o Nafta, comprometendo a imagem dos democratas como defensores dos trabalhadores americanos. Em sua gestão, Trump renegociou os termos do Nafta para favorecer os EUA, o que fez parecer que o republicano estava ao menos ouvindo os apelos de operários em cidades como Dayton. “Esta foi uma de suas melhores jogadas. As pessoas aqui gostaram”, afirma Cox. “Disso e de realmente dar um soco no nariz da China.”
Não faltam democratas que admitem os erros em Ohio, mas o presidente dos democratas no condado de Montgomery, Mohamed Al-Hamdani, encara o problema de forma diferente. Primeiro muçulmano a presidir uma seção do Partido Democrata no estado, ele avalia que o equívoco vai além de ignorar os trabalhadores industriais. “Tornamo-nos um país polarizado, e penso que parte disso se deve ao fato de a demografia estar mudando nos EUA. Em 1992, quando minha família veio para cá, não creio que houvesse um muçulmano no Congresso. As pessoas negras tinham poucas cadeiras no Congresso, as mulheres tinham um número ainda menor de assentos no Congresso e no Senado. E você não podia nem mencionar a sigla ‘LGBTQIA+’”, observa. “Em 35 anos, o país mudou rapidamente, e algumas dessas mudanças têm um custo para um partido como o nosso. Quando você apoia, tudo isso pode sofrer uma reação negativa. Estamos do lado certo da história, com certeza. Mas fazer a coisa certa nem sempre nos elege.”
Essa divisão pode ser vista em diferentes opiniões sobre a razão pela qual o antigo congressista de Ohio Tim Ryan perdeu a corrida para o Senado dos EUA no ano passado para o republicano J. D. Vance, autor do best seller Hillbilly Elegy – um relato controverso sobre como crescer no meio da pobreza e da dependência de drogas. Às vezes, Ryan parecia estar concorrendo contra seu próprio partido. “Vimos um sistema econômico falido, onde ambas as partes se venderam aos interesses corporativos que transferiram nossos empregos para a região sul do país, depois para o México e então para a China. Não há liberdade econômica se não houver empregos aqui, nos EUA”, discursou o democrata num comício eleitoral de 2022.
Cox, que chama Ryan de “o democrata dos trabalhadores”, acredita que ele perdeu porque a direção nacional do partido não financiou sua campanha adequadamente. Ryan acusou a cúpula democrata de descartar estados como Ohio, que não têm maioria de eleitores com diploma universitário.
Após o Nafta de Clinton, milhares de empregos em fábricas migraram para o México
Al-Hamdani acha que Ryan estava tão concentrado em reconquistar o apoio daqueles que migraram para Trump, como alguns dos sindicalizados de Cox, que negligenciou os eleitores que permaneceram com os democratas. “Ainda temos uma base diversificada. No condado de Montgomery, a maioria dos votos destinados aos democratas ainda vem de áreas muito diversas, de bairros negros, inclusive”, avalia. “A equipe de Ryan calculou que esses eleitores já estavam no papo, mas isso não era verdade. Eles não votaram nos números que queríamos. Acho que muito disso se deve ao fato de eles se sentirem, com razão, esquecidos ou tidos como garantidos.”
Além destes há os eleitores rurais. Embora as três maiores cidades de Ohio – Cleveland, Columbus e Cincinnati – permaneçam solidamente democratas, isso não é suficiente para compensar o enorme afastamento do partido fora das áreas urbanas. Fred Strahorn, membro negro da legislatura de Ohio por um distrito de Dayton durante quase 20 anos e que também liderou a bancada democrata por quatro anos, diz que o partido não foi apoiado pelos liberais da Costa Leste, que rejeitaram os eleitores de Trump motivados por preconceito. “Alguns desses eleitores consideraram isso um insulto, o que os tornou ainda mais firmes em suas decisões. Não creio que seja assim que se corteja os eleitores. Não acho que você possa simplesmente dizer: ‘Ei, por que você não concordou comigo, há algo errado com você’?”
Strahorn avalia que Biden, se deseja ter alguma chance de vencer no estado, precisa retornar à estratégia de Obama de passar muito tempo em campo, dizendo às pessoas o que ele faria por elas. Mas os democratas também precisam entrar no debate de “questões decisivas”, como armas e apoio aos militares, para explicar que o partido não é hostil a nenhum deles. “Há maneiras de falar sobre isso, mas é preciso envolvê-los.”
Strahorn não prevê um retorno rápido do partido em Ohio. Conquistar a confiança dos eleitores é um jogo demorado. Ele deseja que os democratas tenham a coragem de abraçar o que ele considera um dos pontos mais fortes do partido: a defesa do governo como meio de melhorar a vida das pessoas. Segundo ele, o partido ficou com medo de fazê-lo diante dos implacáveis ataques republicanos, que culpam o “grande governo” por todos os males, estratégia reforçada pelos democratas no Congresso que servem unicamente aos interesses das empresas. “Não defendemos o governo, não explicamos todas as coisas que ele faz por todos. Se você não contestar, será realmente difícil para o eleitorado vê-lo como alguém que está tentando ajudá-lo, porque você não explicou como funciona. Esse é um campo de batalha.” •
Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves.
Publicado na edição n° 1277 de CartaCapital, em 20 de setembro de 2023.
Apoie o jornalismo que chama as coisas pelo nome
Depois de anos bicudos, voltamos a um Brasil minimamente normal. Este novo normal, contudo, segue repleto de incertezas. A ameaça bolsonarista persiste e os apetites do mercado e do Congresso continuam a pressionar o governo. Lá fora, o avanço global da extrema-direita e a brutalidade em Gaza e na Ucrânia arriscam implodir os frágeis alicerces da governança mundial.
CartaCapital não tem o apoio de bancos e fundações. Sobrevive, unicamente, da venda de anúncios e projetos e das contribuições de seus leitores. E seu apoio, leitor, é cada vez mais fundamental.
Não deixe a Carta parar. Se você valoriza o bom jornalismo, nos ajude a seguir lutando. Assine a edição semanal da revista ou contribua com o quanto puder.