Cultura
A fadista e o Brasil
A cantora Carminho, descendente artística de Amália Rodrigues, busca aprofundar as conexões entre o gênero português, a MPB e a musicalidade africana


Carminho, além da paixão pelo gênero português por excelência, nutre, há muito tempo, um culto pela música brasileira. A intérprete de 39 anos já gravou canções do repertório de Marisa Monte e Chico Buarque, lançou um disco dedicado à obra de Tom Jobim e participou de gravações com Elba Ramalho e Alceu Valença.
Portuguesa, seu lançamento mais recente, embora esteja recheado de fados, traz uma parceria com o compositor carioca Marcelo Camelo. O álbum foi o ponto de partida para uma turnê que a cantora fez pelo País, entre o fim de agosto e o início de setembro, que incluiu apresentações com o cantor e compositor Silva.
“Quando vim ao Brasil pela primeira vez, duas décadas atrás, minha gravadora perguntou com quem eu gostaria de gravar. Disse então os nomes de Chico Buarque, Nana Caymmi e Milton Nascimento. Para minha surpresa, todos aceitaram”, rememora ela, em entrevista a CartaCapital, por Zoom. “Gosto de fazer essa conexão entre os dois países pela música.”
O fado sempre se fez presente na casa de Maria do Carmo de Carvalho Rebelo de Andrade, nome pomposo que, na vida artística, virou esse diminutivo carinhoso. Sua mãe, Teresa Siqueira, é cantora de fado e foi sua primeira influência. O pai trabalhava como economista, mas adquiriu uma casa de fados em Lisboa. Ali, a pequena Maria assistia, embevecida, a alguns dos principais nomes do gênero.
“Aquelas noites foram determinantes para eu escolher essa carreira. Via as apresentações no colo de meu pai”, diz. Amália Rodrigues (1920-1999) foi outra influência óbvia. “Ela é fundamental, um ser completo. Ela transformou o gênero e o levou para um lugar muito mais alto.”
Carminho pertence a uma geração de intérpretes que trabalha pela revitalização do fado. Mas sua conduta não tem nada de passadista. Sua abordagem faz, ao contrário, lembrar a de Wynton Marsalis, o trompetista e maestro americano, em relação aos hinos das jazz bands. “Não sinto isso como preservação, mas sim algo que acontece de maneira natural”, diz, fazendo questão de pontuar que não é o apego à memória que a conduz.
Foram, quem diria, os próprios estudos do fado que conduziram Carminho ao Brasil.
A intérprete, de 39 anos, é filha de uma fadista e de um economista que adquiriu uma casa dedicada ao gênero
O gênero, segundo ela, ao ser trazido para cá pelos colonizadores, foi acrescido de uma sonoridade africana. “Muitos relatos sobre o fado falam sobre uma musicalidade diferente daquilo que conhecemos. Essa musicalidade, trazida para o Brasil, acabou mesclada àquela das danças africanas. Ou seja, tornou-se uma música muito mais sensual do que era originalmente”, relata.
O fado, em Portugal, impôs-se sem os elementos da dança, mas manteve forte as características da herança moura, perceptível no canto chorado que, por vezes, remete a uma prece. Esse estilo foi reforçado por Amália, o grande nome do fado. “Ela vinha da região das Beiras e trazia muitos desses cantares lindos de Espanha” explica a discípula.
Enquanto tece essas conexões, Carminho chama atenção também para o gosto dos brasileiros pela música feita em Portugal. Certa vez, ao ouvir Milton Nascimento, ela notou um quê de fado no modo de cantar do ícone do Clube da Esquina.
“Estávamos numa casa de shows e tocou um fado tradicional. Milton começou a cantar, achando que era do repertório de alguma cantora brasileira. Foi ali que reparei que havia influência da música portuguesa na canção brasileira”, diz. E, no fim, os dois estavam certos. Milton havia conhecido a canção pela voz de Ester de Abreu (1921-1997), que nasceu em Lisboa, mas fez carreira no Brasil.
Uma das pitadas brasileiras presentes em Portuguesa deixa-se ouvir em Levo o Meu Barco no Mar, de Marcelo Camelo, que Carminho definiu como um fado transatlântico. “Quando ele me mostrou essa canção, eu já sabia ela era para mim”, diz.
Encerrada a turnê brasileira, Carminho, antes de aportar de novo em Alcântara, onde vive, esteve na Itália para apresentar, no Festival de Cinema de Veneza, Poor Things, filme do diretor grego Yorgos Lanthimos (de A Favorita), no qual fez uma participação especial interpretando O Quarto, faixa de Portuguesa.
“Yorgos me convidou para participar de uma cena em que eu cantasse um fado. Escolhemos esse tema que tem letra de minha autoria. Quando nos reunimos por vídeo, Yorgos me desafiou a tocar guitarra portuguesa. O convite me surpreendeu, mas, depois de muito trabalho, fiquei imensamente feliz”, diz. “A gravação, feita ao vivo, no set, foi de uma emoção ímpar. Na cena, canto e toco numa intensa troca de olhar com (a atriz) Emma Stone.”
No início do mês passado, antes da turnê brasileira, ela cantara Estrela, canção do álbum Maria (2018), durante a Vigília da Jornada Mundial da Juventude, no Parque Tejo, em Lisboa, numa cerimônia presidida pelo papa Francisco.
E assim vai Carminho fazendo seu país – e, com ele, um pouco de o Brasil – chegar a ouvidos de outras plagas. •
Publicado na edição n° 1277 de CartaCapital, em 20 de setembro de 2023.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘A fadista e o Brasil’
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