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Célula cidadã

Em seu novo trabalho, o oncologista Siddhartha Mukherjee revela, a partir de surpreendentes detalhes da nossa biologia, o que significa ser humano

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Ciência e literatura. “Ainda não aprendemos as canções da biologia celular”, escreve o pesquisador, muito aclamado por seus livros anteriores – Imagem: Deborah Feingold e iStockphoto
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Na primavera de 1858, o cientista alemão Rudolf Virchow publicou uma visão pouco ortodoxa da natureza dos organismos vivos. No livro Cellular Pathology, ele argumentou que o corpo humano era, simplesmente, “um estado celular no qual cada célula é um cidadão”. De uma única célula original derivam todas as outras, argumentou ele. E quando sua função é perturbada, ocorre, geralmente, a doença.

As origens dos argumentos de ­Virchow são intrigantes. Médico recluso, progressista e de fala mansa, que evitara a carreira na igreja por achar sua voz muito fraca para pregar, ele defendeu a causa da saúde pública e promoveu o livre-pensamento. Suas opiniões fizeram com que tivesse confrontos frequentes com as autoridades alemãs, como quando defendeu o combate aos surtos de tifo. Pelas queixas, Virchow foi obrigado a renunciar ao cargo num hospital em Berlim.

Exilado no subúrbio de ­Würzburg, ­Virchow começou a trabalhar em seu livro. Foi um tempo bem gasto para o jovem médico, que produziu uma obra que “explodiria pelo mundo da medicina”, como diz ­Siddhartha ­Mukherjee, oncologista residente nos Estados Unidos, aclamado por seus livros premiados sobre genética e câncer.

Ao comparar o corpo humano ao estado de cidadão perfeito e mostrar que a célula é o locus de todas as doenças, Virchow forneceu uma nova visão da fisiologia humana. Foi ele o primeiro a propor que os cânceres são causados por células que se dividem descontroladamente.

Vários cientistas passariam então a seguir suas ideias, revelando os papéis cruciais das células na determinação da condição humana. Entre estes estavam John Snow, com seu trabalho sobre a cólera em Londres, e Louis Pasteur, com suas descobertas bacterianas em Paris.

CANÇÃO DA CÉLULA. Siddhartha Mukherjee. Tradução: Berilo Vargas. Companhia das Letras (552 págs., 149,90 reais)

Mais tarde, no século XX, os pesquisadores começaram, com precisão cada vez maior, a perscrutar o interior das células e a identificar os caminhos precisos envolvidos nesse ímpeto rebelde – trabalho que continua até hoje.

Os tratamentos de tumores foram transformados, os procedimentos cirúrgicos aprimorados e uma série de doenças, da anemia falciforme a defeitos cardíacos, está sendo enfrentada com maior sucesso.

Por isso devemos agradecer à ideia da célula-cidadã de Virchow. Ou, como Mukherjee descreve: “Somos constituí­dos de blocos unitários – extraordinariamente diversos em forma, tamanho e função, mas ainda assim unitários”.

No entanto, como Mukherjee reconhece em seu mais novo trabalho, A Canção da Célula – As Descobertas da Medicina e o Novo Humano, que acaba de ser lançado no Brasil pela Companhia das Letras, os mistérios permanecem. Ele aponta como exemplos o fígado e o baço.

Ambos os órgãos são compostos de coleções de células amplamente semelhantes; são do mesmo tamanho; são vizinhos anatômicos e possuem praticamente o mesmo fluxo de sangue. Mas um, o fígado, está entre os locais mais frequentes de câncer, enquanto o outro, o baço, raramente tem algum. Que distinção sutil separa essas duas coleções de células e explica a extrema diferença em seus comportamentos?

O problema é que “podemos ­nomear as células, mas ainda não aprendemos as canções da biologia celular”, diz Mukherjee. Em outras palavras, entendemos a estrutura desses blocos básicos de construção da vida, mas não como eles interagem – ou como cantam uns para os outros. Quão mais depressa aprendermos essa música, mais rápido desvendaremos as doenças que ainda nos afligem e avançaremos na capacidade de tratá-las, acrescenta o autor.

É uma visão fascinante da doença e Mukherjee a sustenta bem, apresentando uma ampla variedade de personagens que desempenharam seus papéis ao desvendar a canção da célula, ao mesmo tempo que apimenta sua narrativa com estudos de caso e retratos enigmáticos de seus protagonistas.

Robert Edwards e Patrick Steptoe, pioneiros da fertilização in vitro – talvez o ato médico definitivo em intervenção celular –, são descritos no livro como “independentes, mas dissidentes cuidadosos”, enquanto o vencedor do Prêmio ­Nobel Paul Nurse, um dos cientistas mais antigos do Reino Unido, é comparado a uma “versão envelhecida e enrugada de Bilbo Baggins”. Descrever um ganhador do Nobel como hobbit é uma ideia, no mínimo, interessante.

Obra mais uma vez certeira, A Canção da Célula é livre de detalhes excessivamente complexos que submergiriam o leitor. O resultado é uma exploração confiante, oportuna – e, mais importante, biologicamente precisa – do que significa ser humano. •


Tradução: Luiz Roberto Mendes Gonçalves.

Publicado na edição n° 1276 de CartaCapital, em 13 de setembro de 2023.

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