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Tecnologia desumanizadora

Os idosos, os pobres e os sem-banco tornaram-se párias numa sociedade digitalizada e sem dinheiro

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Os aplicativos em smartphones são um tormento para muitos – Imagem: iStockphoto
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Qualquer que seja o oposto da palavra “comovente”, ele certamente se aplica à história de Ruth e Peter Jaffe. O casal de idosos de Ealing, na zona oeste de Londres, ganhou as manchetes na semana passada depois de receber uma cobrança de 110 libras (670 reais) pela companhia aérea Ryanair para imprimir suas passagens no aeroporto de Stansted. Mesmo considerando o custo exorbitante da tinta da impressora, 55 libras para cada folha de papel, é um exemplo chocantemente criativo de preços punitivos.

Os Jaffe, de 79 e 80 anos, disseram que ficaram confusos no site da Ryanair e acidentalmente imprimiram suas passagens de volta, em vez das de ida para Bergerac. É o tipo de erro que qualquer um poderia cometer, embora os octogenários, muitos dos quais lutam com as demandas tecnológicas da digitalização, sejam muito mais propensos a cometê-lo.

A empresa apresentou uma justificativa sem graça pela cobrança: “Lamentamos que esses passageiros tenham ignorado o lembrete por e-mail e não tenham feito o check-in online”. A pressuposição é de que os idosos devem ficar atentos a cada missiva do mundo online, quando, na verdade, muitos o consideram uma selva de golpes, lixo eletrônico, senhas e riscos de segurança infinitos, no qual eles se aventuram o mínimo possível.

A situação dos Jaffe é emblemática de um problema maior enfrentado pelos idosos e pelos que não estão totalmente conectados aos sistemas modernos de negócios. A historiadora e apresentadora de tevê Amanda Vickery observou, em uma série de tuítes indignados, que a maioria dos estacionamentos hoje não aceita dinheiro e as bilheterias estão desaparecendo. “Se você não é conhecedor de tecnologia, está frito. É muito excludente.” A verdadeira causa da ira de Vickery, no entanto, foi uma clínica para tratar câncer de mama que, em suas palavras, rejeitou “algumas senhorinhas (…) porque não tinham uma mensagem SMS de um aplicativo. Elas nem tinham telefone. Terrível! E etarista!”

A Good Things Foundation é a maior instituição beneficente de inclusão digital do Reino Unido, que busca ajudar 1 milhão de pessoas a superar uma divisão tecnológica que se aprofundou durante a crise do custo de vida. Natasha Bright-Wray, diretora associada de comunicações da fundação, diz que “as pessoas excluídas digitalmente são amplamente esquecidas” por um governo que se vangloria de tornar o Reino Unido uma superpotência digital, mas é apático em relação aos que ficam para trás e carece de qualquer estratégia significativa de inclusão digital.

Os efeitos são visíveis no Sistema Nacional de Saúde (NHS, na sigla em inglês), em que a digitalização aprimorada pode trazer maior eficiência, mas muitas vezes deixa aqueles, como as mulheres que Vickery testemunhou, incapazes de se beneficiar dos serviços. Afinal, como observa Bright-Wray, uma em cada 20 famílias do Reino Unido não tem acesso à internet em casa. E, no caso dos idosos, mesmo que tenham acesso, eles frequentemente têm capacidade limitada de usá-la. Da mesma forma, a noção de que todo mundo tem uma conta bancária e um cartão ou telefone com dinheiro não resiste a uma visita ao supermercado local, onde é perceptível como muitas pessoas evitam os caixas que dizem “só cartão”.

A sociedade sem dinheiro já é efetivamente uma realidade para a maioria de nós, mas ainda existe uma minoria para quem ela representa uma dor de cabeça contínua. O governo disse na semana passada aos bancos de rua que eles devem oferecer acesso a caixas eletrônicos a até 5 quilômetros dos clientes, depois que o fechamento de milhares de agências reduziu o número de caixas eletrônicos.

O brilhante futuro da informatização total é uma distopia para quem não tem meios de acessá-la

Há também uma estimativa de 1,3 milhão de adultos no Reino Unido que são “desbancados” – ou seja, não têm conta em banco. Para eles, algo tão mundano quanto estacionar um carro é cada vez mais complicado – um quarto dos distritos de Londres removeu as máquinas de estacionamento em favor de aplicativos de smartphones.

Essa tendência silenciosa sobre a remoção do dinheiro forneceu mais uma frente para o pensamento conspiratório. Vá a uma demonstração do tipo de pessoa que acredita que as torres de celular 5G e a Covid estão interligadas e é provável que você veja cartazes alertando sobre os males do dinheiro eletrônico.

É fácil zombar desse tipo de pensamento, mas ele se alimenta de uma sensação de impotência. Recentemente, em Nottinghamshire, conversei com uma mulher chamada Audrey, que me disse que trabalhou na profissão de cuidadora durante 50 anos. Ela e o marido estavam cheios de advertências melodramáticas sobre a China e os poderes “obscuros” que controlavam a política, mas ela também disse que, quando se trata de eliminar as transações em dinheiro, “são os pobres e os marginalizados que são esquecidos”. Ela tinha razão.

O brilhante futuro da informatização total se parece muito com uma distopia para alguém que não o entende ou não tem meios de acessá-lo. E quase por definição as pessoas que não conseguem acessar o mundo digitalizado raramente são visíveis, porque a ausência não é fácil de ver. O que é claro é que maior eficiência não leva necessariamente a maior bem-estar.

Do ponto de vista tecnológico e econômico, é difícil refutar a ideia de remover as bilheterias das estações ferroviárias. Está havendo um processo de consulta pública por parte das operadoras ferroviárias que apresenta as propostas de encerramento como uma forma de aproximar “o pessoal da estação dos clientes”.

Já o sindicato ferroviário RMT acredita que é uma forma de aproximar os funcionários do desemprego, e montou uma campanha para divulgar o bom trabalho das bilheterias de toda a rede. Seja qual for a verdade, a interação humana corre o risco de ser subestimada no cenário digital. A tecnologia não precisa ser desumanizadora, mas, se for para evitar esse resultado, ela deve se focar no ser humano, não apenas no consumidor e, em particular, não apenas no consumidor digital.

O dinheiro, assim como as passagens aéreas impressas ou mesmo as passagens de trem, sem dúvida um dia parecerá tão anacrônico quanto o sistema de escambo. Nesse ínterim, a transição deve concentrar-se em garantir que ninguém seja descartado por ser velho, pobre ou deficiente para ter importância para os deuses da eficiência. A alternativa é o jeito da Ryanair, em que o analógico vira uma passagem para o consumidor ser levado no bico. •


Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves.

Publicado na edição n° 1275 de CartaCapital, em 06 de setembro de 2023.

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