

Opinião
Ninguém te ensinou como se ama uma mulher
Amar mulheres têm sido uma transgressão desde os tempos de Sappho, a poeta grega que se dedicava à escrita de poesia devocional e erótica sobre figuras femininas


O ano era de dois mil e treze. Uma menina curiosa captura um adesivo encontrado na calçada – a figura de uma mulher de pele morena e cabelos negros crepitava no papel, quase que como se a convidasse. Ela agarrou o desenho enquanto ninguém a via e o levou consigo para casa. Aquele era o seu segredo. Mal sabia que, dali em diante, os segredos seriam muitos, até que ela se revelasse a si mesma.
O desenho no adesivo poderia ser da mulher refletida no espelho, nas capas de revistas e nas fotografias das redes sociais. As mulheres que por nós passam nas ruas, aquelas que conhecemos em universidades ou nos salões de beleza, em livrarias. A ambiguidade dessa figura que nos acompanha desde o nascimento, mas da qual somos brutalmente desassociadas a partir do momento em que os ideais de feminilidade – enquanto servidão, ausência de personalidade desenvolvida, heterossexualidade compulsória e um ideal de maternidade que nos atravessa desde as brincadeiras com bonecas e chazinhos da tarde – se tornam centrais na concepção que construímos sobre o que é ser uma mulher.
Onde impera um tímido contato com o desconhecido, o medo e as fabulações se multiplicam. Acreditamos em mitos como o suposto comportamento feminino traiçoeiro, o anseio generalizado por furtar de nós tudo o que conquistamos, e a guerra constante pela atenção da figura masculina imaginária ou factual que media essas relações. Como trazido por Dee L. R. Graham em Amar para Sobreviver, projetamos nossos anseios e medos mais primitivos na figura feminina –sem que a vejamos de fato.
Em um mundo no qual aprendemos a tatear alegorias e a internalizar tudo aquilo que aprendemos daqueles que nos definem, pois a autodefinição é vedada às mulheres, como amá-las e amar a nós mesmas? Como cruzar a última fronteira e permitir-se humanizar? Essas são perguntas para as quais ainda construímos respostas coletivamente, através do feminismo e de outras perspectivas de ação social focadas.
Amar mulheres têm sido uma transgressão desde os tempos de Sappho, a poeta grega que se dedicava à escrita de poesia devocional e erótica sobre figuras femininas, passando pelas feministas lésbicas que foram acusadas de constituir a “ameaça lavanda” nos movimentos feministas norte-americanos dos anos 1960. Amar mulheres nunca foi recomendável, assim como jamais esteve em alta. Agosto, mês que dentre as diversas reivindicações, também carrega consigo os dias da Visibilidade e do Orgulho Lésbico, tende a ser negligenciado e pouco difundido por organizações LGBT+, resistindo assim através das mãos das mulheres que se engajam em tais pautas.
Ao contrário do que costumamos acreditar, amar mulheres ultrapassa perspectivas de sexualidade e adentra um terreno de cumplicidade que também nos conduz ao espaço familiar e fraterno. O repúdio ao outro lado da moeda, se sustenta porque não sustentamos o olhar umas para as outras e somos alocadas em ciclos de solidão e violência horizontal.
Quantas mulheres, dentre as mães que criam os seus filhos sem o auxílio de uma parceria, não são postas à prova através do isolamento, porque se tornam nessa imagem que somos ensinadas a repudiar? Quantas mulheres sentem-se sós em razão do abandono social, da sobrecarga e de tantas estratégias estruturais que minam a nossa saúde, as nossas energias e perspectivas?
Como dizia a escritora e ativista Cila Santos, “ninguém te ensinou a amar uma mulher”. É chegado o momento de aprender.
Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.
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