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A tributação de lucros inesperados, obtidos também no Brasil, espalha-se nos países avançados

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Compensação. A Itália passou a cobrar 40% sobre os ganhos extras das instituições financeiras proporcionados pelo aumento dos juros – Imagem: iStockphoto
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Ignorada no Brasil, a tributação sobre lucros inesperados ou extraordinários, os windfall profits, adotada desde o ano passado nos Estados Unidos e na Europa, a começar pelas empresas petrolíferas, espraiou-se para outros setores no continente europeu, chegou aos bancos da Hungria, República Tcheca, Lituânia, Espanha e, mais recentemente, da Itália, para compensar investidores e contribuintes pelos enormes danos provocados pelos rendimentos exorbitantes das instituições financeiras. No começo do mês, o governo italiano anunciou um imposto extraordinário de 40% sobre os bancos locais, acusados de obter bilhões em lucro extra com a elevação das taxas de juro. O governo planeja usar os recursos provenientes da tributação, estimados em 4,9 bilhões de euros, para apoiar os detentores de hipotecas e reduzir impostos, no momento em que o custo crescente coloca pressão extra sobre as famílias.

Guerras e pandemias são exemplos de eventos inesperados que provocam dificuldades de suprimento e saltos nos preços de energia, alimentos e outros itens, proporcionando lucros extraordinários às empresas produtoras e fornecedoras, que justificam a adoção de impostos para atenuar os efeitos daquelas elevações sobre a população. No Brasil, os maiores bancos obtiveram lucro recorde no pior ano da pandemia de Covid-19. Em março, o governo Lula, ao que tudo indica inspirado na figura da taxação de lucros extraordinários, decidiu instituir um imposto de 9,2% sobre as exportações de petróleo bruto, por quatro meses, como medida de recomposição parcial da receita fiscal desfalcada por isenções tributárias eleitoreiras no governo Bolsonaro. A decisão do governo italiano foi tomada pouco depois de o Itesa Sanpaolo elevar suas previsões de lucro para o ano, registrou o jornal inglês The Guardian. Cabe recordar que quatro bancos brasileiros figuraram entre os dez mais rentáveis do mundo no ano passado.

A cobrança de impostos sobre lucros obtidos por determinados setores ou companhias em consequência de um acontecimento inesperado é uma tradição em países avançados. Nos EUA, em 1980, foi aprovada uma legislação federal que impôs tributo às companhias petrolíferas em razão dos lucros auferidos com o aumento súbito dos preços do petróleo ocorrido durante a década de 1970. No ano passado, o Conselho da União Europeia concordou com a imposição de um imposto sobre lucros extraordinários das empresas de combustíveis fósseis em toda a UE, provocados pelo salto dos preços devido à guerra da Ucrânia, na chamada “contribuição de solidariedade”. Ao mesmo tempo, os estados membros da UE concordaram em impor um teto de preço aos chamados produtores de eletricidade a gás, uma vez que os preços europeus do gás natural dispararam em consequência da guerra. A política deve gerar uma arrecadação de cerca de 140 bilhões de euros e planeja-se a utilização desses recursos para compensar parcialmente as famílias pelas altas contas de energia “em uma medida não seletiva e transparente de apoio a todos os consumidores finais”, segundo o conselho.

De acordo com a organização Tax Foundation, alguns países não limitaram o alcance do imposto aos produtores de energia ou empresas de petróleo e gás. Hungria, República Tcheca, Lituânia e Espanha incluíram o setor bancário e a Letônia considera a possibilidade de fazer o mesmo. Portugal aplicou o imposto extraordinário a empresas de distribuição de alimentos, enquanto a Croácia o estendeu a todas as empresas que excedem um determinado limite de receita.

O objetivo é minimizar os efeitos da inflação e dos juros

Os lucros dos bancos italianos dispararam nos últimos trimestres, anotou o Guardian, porque o aumento das taxas de juro permitiu a subida do valor que cobram dos tomadores de empréstimos e hipotecas em um ritmo mais rápido do que melhoram os retornos dos poupadores. Os credores embolsaram a diferença, conhecida como margem líquida de juros ou spread, medida fundamental de sua lucratividade. “A Itália decidiu taxar os bancos como forma de desestimular o ­spread, e usar os recursos captados para minimizar os problemas causados pela elevação dos juros. É um formato que poderia ser usado pelo Brasil”, sublinha a economista Ana Rosa Ribeiro de Mendonça, do Instituto de Economia da Unicamp. É isso o que está no modelo italiano, ressalta a professora, taxar e utilizar esses recursos para atenuar as consequências sobre os consumidores, afetados pelo aumento das taxas dos empréstimos. As hipotecas têm um peso muito grande na renda das famílias e neste momento elas estão fragilizadas, seja devido à redução do ritmo de atividades, seja por causa do aumento dos custos e da inflação. E o aumento das taxas de juro pune ainda mais a parcela da população endividada. O modelo espanhol anunciado no ano passado pelo governo socialista é um pouco diferente, ressalta a economista. A ideia é um aumento do imposto sobre bancos e companhias de distribuição de energia, que também se aproveitaram da situação criada pela guerra da Ucrânia para elevar preços, juros e lucros. A medida está, entretanto, sendo questionada, inclusive judicialmente.

O governo brasileiro, até agora, não cogita lançar mão da legítima taxação de lucros extraordinários dos bancos, mas seria um erro subestimar as dificuldades para limitar o espaço do poderoso setor financeiro no País. É preciso recordar que um dos motivos da ira das classes abastadas desencadeada contra o presidente Getúlio Vargas foi precisamente a lei de lucros extraordinários, encaminhada pelo Executivo e barrada pelo ­Congresso, como anota o historiador Lira Neto. Até dezembro, a segunda etapa da reforma tributária, sobre renda e patrimônio, deverá ser encaminhada. Um momento decisivo, como destaca o técnico do Ipea João Maria de Oliveira. “O nosso perfil de tributação é o oposto daquele da OCDE, que tributa mais renda e menos consumo e deveria caminhar no sentido da tributação maior da renda. E aí existem questões especiais como a dos bancos e das petroleiras. Acredito que o governo deverá dar passos importantes nessa direção, de maior tributação da renda”. A ver.  •

Publicado na edição n° 1273 de CartaCapital, em 23 de agosto de 2023.

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