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Cataclismo literal e figurativo

O autor santista Manoel Herzog atualiza o mito do dilúvio em uma ficção na qual o Brasil deixa de existir

Cataclismo literal e figurativo
Cataclismo literal e figurativo
Um dos temas caros ao autor é a própria língua brasileira – Imagem: Pablo Saborido
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Em tempos bíblicos, em face da amea­ça de extermínio provocado por dilúvios, dava-se ao reino animal a possibilidade de uma salvação planejada – em geral, oferecida por divindades a seu representante predileto, o ser humano. Mandavam-no construir uma embarcação para salvar vidas específicas.

Nos tempos de agora, conforme narrado pele autor santista Manoel Herzog em A Língua Submersa, os humanos não receberam a mesma oportunidade, e salvou-se quem pôde. A história se passa num futuro próximo, no qual a inundação da Terra foi acelerada por uma ação bélica da China, que bombardeou as calotas polares.

No romance, o Brasil não existe mais. Com a nova configuração do planeta, está no território do País a nação ­Bolivana-Zumbi, cujos habitantes falam uma variação compulsória do portunhol. O português está banido.

Para inventar esse futuro, Herzog usa um procedimento arrojado: transforma em ficção verossímil os medos vigentes no imaginário coletivo e na discussão pública.

Além de exacerbar a elevação dos mares, sua criação literária expande o desmatamento, agrava a escassez alimentícia e, praticamente, acaba com as escolas. Em duas palavras: piora tudo. Põe o mundo em cataclismo literal e figurativo.

A LÍNGUA SUBMERSA. Manoel Herzog. Alfaguara (216 págs., 74,90 reais)

Ao atribuir à China o papel de macrovilão geopolítico, o autor arrisca-se a ser mal compreendido e até acusado de xenofobia por quem confunde criação literária com julgamento pessoal. Mas o risco é pequeno diante do ensejo proporcionado pela manobra narrativa: a nova ordem diz menos sobre os chineses do que sobre os boliviana-zumbianos ou, melhor, brasileiros.

Permanecem no povo daqui, entre outras condições, o complexo de vira-lata, a subserviência e o moralismo, independentemente de quem controle a economia mundial.

“O país é próspero, essa parceria com a China deu resultado, passou a centro do mundo civilizado no Ocidente, […] os Estados Unidos são hoje um fazendão que sofre o preconceito e o esculacho da América Latina”, diz o narrador. “No entanto, muito da cultura do pré-águas ficou impregnada na alma de ­Bolivana-Zumbi: o pendor pelos bens materiais, a teologia da prosperidade, o desejo de elevação social através da acumulação.”

A Língua Submersa destina-se, sobretudo, aos que, como o autor, têm apreço pela língua brasileira. Ela, não à toa, está no centro do título e da trama. O mito do dilúvio atualizado por Herzog advoga em seu favor, contra qualquer realidade que a censure, proíba ou afogue. •

Publicado na edição n° 1273 de CartaCapital, em 23 de agosto de 2023.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Cataclismo literal e figurativo’

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