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Os gestos dos acorrentados

O romance ‘Os Profetas’ narra de maneira prodigiosa uma história de amor entre dois homens escravizados, numa plantação no Mississippi, nos EUA

Os gestos dos acorrentados
Os gestos dos acorrentados
Jones tem um estilo lírico e ao mesmo tempo contundente – Imagem: Alberto Vargas Rainriver
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Em uma carta ao leitor, logo no início de seu romance de estreia, Robert ­Jones Jr. diz ter sido forçado a escrever o livro depois de ouvir vozes ancestrais insistindo para que fizesse a seguinte pergunta: “Existiam pessoas negras queer em um passado distante?” E que então compartilhasse a resposta: “É claro que sim”. As vozes dos escritores James Baldwin (1924-1987) e Toni ­Morrison (1931-2019) também pareciam alcançá-lo e encorajá-lo.

Esses dois nomes, inclusive, apareceram repetidamente no material de lançamento de Os Profetas, que chega às livrarias brasileiras na sexta-feira 18. A sinopse original do livro, em inglês, chega a exagerar, afirmando que Jones apresenta um lirismo semelhante ao desses gigantes literários.

Os Profetas, que conta uma história de amor entre dois homens escravizados, Isaías e Samuel, numa plantação no Mississippi, no Sul dos Estados Unidos, é, de fato, um romance notável. Jones oferece uma intimidade terna e próxima, mas faz também uma varredura da história.

Os capítulos são nomeados segundo livros da Bíblia, mas o que realmente distingue a obra são os trechos poéticos escritos nas vozes misteriosas e eternas de sete ancestrais que falam a partir da escuridão.

OS PROFETAS. Robert Jones Jr. Tradução: Viviane Souza Madeira. Companhia das Letras (456 págs., 79,90 reais)

Embora a maior parte da história ocorra na plantação, sendo contada pela perspectiva de vários personagens, a narrativa também é entremeada por cenas ambientadas numa tribo africana matriarcal. A escravização brutal da tribo e o transporte de seus integrantes para a América são relatados com severidade.

Este romance não é – necessariamente – uma leitura fácil. Jones tem um estilo lírico, mas não foge dos horrores da escravidão. Ele escreve que Os Profetas talvez seja até mais “um testemunho” que um livro e pede ao leitor que testemunhe coisas das quais preferiria se afastar. Trata-se, ao mesmo tempo, de uma bela peça de ficção.

Jones tem um talento especial para frases que lembram provérbios, como quando diz estar a dor “úmida nos olhos, presa sobre a língua, quebrada nas palmas das mãos”.

Suas descrições têm uma vivacidade rica e distinta: “Samuel colocou o braço de Isaiah ao redor do pescoço e juntos eles andaram, com o passo penoso e vacilante, as correntes apenas tinindo, de volta ao celeiro, com as pernas arqueadas por causa dos pinos, mas sem quererem ser desacorrentados ainda. Costas gêmeas, suculentas, com as marcas deixadas pelas chibatadas e olhares de reprovação”.

O mesmo detalhamento em camadas é aplicado às vidas emocionais e espirituais dos personagens – memórias e magia, visões e vozes engrossam suas experiências e tornam a narrativa madura e inebriante.

Às vezes, pode soar exagerado. Existem demasiadas metáforas complicadas, emaranhadas em suas próprias imagens. Embora o brilho do texto seja a grande força do livro, ainda há lugares nos quais menos seria mais.

Jones também é ambicioso no escopo da narrativa – e oferece uma polifonia pródiga de medos e desejos conflitantes, deslizando entre as perspectivas de um grande elenco de personagens. Diferentes instâncias de amor entre pessoas do mesmo sexo ocorrem em Os Profetas, mas é o relacionamento entre Samuel e Isaías que dá ao livro sua pulsação e um pouco de suavidade em meio a tantas dificuldades.

Não há banalidades fáceis sobre como o amor triunfa sobre o sofrimento. O sofrimento permeia cada página. Mesmo em momentos de doçura, há também um medo iminente e amea­çador. O que é notável, sugere Jones, é que os humanos ainda amam, mesmo quando as ameaças mais terríveis pairam sobre eles e mesmo sabendo que seus opressores nunca lhes permitirão um final feliz. •


 Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves.

VITRINE

Por Ana Paula Sousa

Marcada por um primeiro casamento fracassado e por um segundo casamento no qual se tornou mãe de nove filhos, Malika, marroquina de origem simples, é a protagonista de Viver à Sua Luz (Nós, 192 págs., 70 reais), romance de Adbellah Taïa, autor nascido no Marrocos e radicado em Paris.

A profícua e festejada autora argentina ­Mariana Enriquez põe seu talento como contista à prova em Os Perigos de Fumar na Cama (Intrínseca, 144 págs., 34,90 ­reais). A obra, finalista do International Booker Prize, reúne 12 histórias construídas com elementos da fantasia e do horror.

Cinquenta Tons de Racismo (Matrix, 128 págs., 39 reais), de Janaína Batista, se soma à lista de livros recentes que têm procurado entender as várias faces do racismo no País. Aqui, a pesquisadora faz um apanhado histórico da miscigenação e reflete sobre as gradações do preconceito.

Publicado na edição n° 1272 de CartaCapital, em 16 de agosto de 2023.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Os gestos dos acorrentados’

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