Opinião
Sete décadas de história
Criado há 70 anos, o Ministério da Saúde garantiu, a despeito dos períodos de retrocesso, que os brasileiros passassem a viver mais
O Ministério da Saúde completou 70 anos com uma história marcada por avanços e retrocessos na construção de uma política pública essencial para o desenvolvimento econômico e social do País. E essa história é muito especial para mim. A seu estudo tenho dedicado boa parte da minha vida, como professor e pesquisador, e dela fiz parte em alguns momentos.
Entre 2003 e 2005, como diretor de Atenção Especializada, pude, entre outras ações, coordenar a criação do SAMU-192 e a política de reestruturação dos hospitais de ensino. Depois, entre 2014 e 2015, tive a honra de contribuir com o fortalecimento do SUS como o 43o ministro da Saúde, um cargo tão instável quanto o de técnico que frequenta o Z-4 na Série A do Brasileirão.
Estas sete décadas refletem distintos projetos e momentos da história, e foram responsáveis, em grande parte, pela mudança do padrão de morbimortalidade da população. As políticas de saúde garantiram que os brasileiros vivessem mais e ocupassem o nosso vasto, diverso e inóspito território.
A partir do início do século XX, o Brasil adotou como modelo hegemônico de saúde o “sanitarismo campanhista”, de inspiração militar, que combatia as doenças por meio de estruturas verticalizadas e estilo repressivo de intervenção. Esses programas foram implantados por eminentes figuras da medicina nacional, como Oswaldo Cruz, Carlos Chagas e Emílio Ribas. Em 1923, as ações de saúde pública foram vinculadas ao Ministério da Justiça e, em 1930, ao da Educação.
Em 1953, finalmente, para aprimorar e ampliar as ações de saúde pública, foi criado o Ministério da Saúde. A pasta mostrou-se fundamental para o controle de doenças transmissíveis em zona urbana e para o processo de urbanização e industrialização do País.
Durante a ditadura militar, o INPS, subordinado ao Ministério da Previdência Social, comandou a extensão da assistência médica para as populações urbana e rural. Privilegiou-se, nesse momento, a prática médica curativa individual e assistencialista, em detrimento da saúde pública. Além disso, criou-se um complexo médico-industrial orientado para a lucratividade dos produtores privados de serviços de saúde.
O ministério, nesse período, perdeu prestígio e recursos. Além disso, até 1989, fazia apenas ações de saúde pública, já que a assistência médica era restrita a quem podia pagar ou quem tinha vínculo previdenciário.
No período da redemocratização, fragilizado, cumpriu papel secundário na agenda sanitária nacional, que via os indicadores de saúde piorar. A ampla mobilização e luta do Movimento da Reforma Sanitária, com a 8ª Conferência Nacional de Saúde e a Assembleia Nacional Constituinte, permitiu que o SUS fosse criado na Constituição de 1988.
A partir daí, a pasta virou a grande protagonista ao assumir a coordenação do SUS em âmbito nacional. Foi um processo de disputas pela implantação de uma política universal e integral de saúde, em um contexto histórico de subfinanciamento e privilegiamento do setor privado. Não foi um período linear, mas o SUS foi capaz de promover a saúde e permitir que os brasileiros vivessem mais.
O golpe de 2016 levou ao cargo de ministro pessoas que defenderam, escandalosamente, o argumento de que bastaria “melhorar a gestão” para que o sistema funcionasse. Essas pessoas, ao mesmo tempo, procuraram desmontar e precarizar políticas exitosas, construídas desde antes da criação do SUS, como é o caso da Política Nacional de Imunização.
O ponto de inflexão mais grave aconteceu sob a gestão Bolsonaro, quando a associação de militares, políticos conservadores e negacionistas resultou na mais grave destruição da história do ministério. As medidas de austeridade, o desmantelamento das capacidades técnicas e a desastrosa resposta à pandemia contribuíram largamente para uma rápida deterioração dos indicadores de saúde.
O desafio agora é reconstruir o SUS em um contexto em que as feridas deixadas permanecem abertas e latejam. A fase atual deverá ficar marcada pela retomada da capacidade de coordenação nacional do SUS, que conquistou inédito padrão de legitimidade social graças ao reconhecimento do quanto foi imprescindível durante a pandemia.
Ficará para a história também por ter sob sua direção, de forma inédita, uma mulher, cientista social e pesquisadora competente, que poderá elevá-lo à condição de patrimônio imaterial do povo brasileiro. •
Publicado na edição n° 1272 de CartaCapital, em 16 de agosto de 2023.
Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.
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