

Opinião
Vidas apagadas
Na Rússia de Putin, as identidades de pessoas trans deixam de ser passíveis de reconhecimento oficial do Estado


O Censo de 2022 aponta que o Brasil é composto, atualmente, de 1.327.802 pessoas quilombolas, o que representa 0,6% do total de toda a população.
Trata-se de um número próximo àquele de Porto Alegre (RS) ou de Belém (PA) distribuído por todo o território nacional, com exceção apenas de dois estados da federação: Acre e Rondônia. Em contraste, Bahia, Maranhão e Minas Gerais são os estados onde mais pessoas quilombolas vivem.
O ano de 2022 registra o “marco zero” do levantamento de estatísticas sobre esse grupo populacional, com o intuito de auxiliar na produção e na definição de políticas públicas que se debrucem sobre ele. Mas, logo depois disso, o Congresso brasileiro aprovou um esboço de lei que proibirá pessoas de se identificarem ou se reivindicarem como “quilombolas”.
Não é alarmante e preocupante a invalidação da existência de um grupo de pessoas por uma esfera legislativa?
Esse esboço de lei não existe no Brasil nem foi aprovado pelo nosso Congresso. Mas algo muito semelhante a isso aconteceu na Rússia, no dia 14 de julho. Lá, quem está no alvo do governo e passa a ter sua existência banida não são os quilombolas, mas as pessoas trans.
Esta é mais uma ação na escalada autoritária de Putin contra a população LGBTI+ do país. Vale ressaltar que, em dezembro de 2022, o presidente russo aprovou uma lei que reforça a política de exclusão da representação dessa população em livros, filmes, séries e comerciais.
Além disso, estão banidas, tanto das esferas digitais quanto em espaços públicos, demonstrações de afeto. Putin tem, reiteradamente, advogado que o estilo de vida de pessoas LGBTI+ vai contra os valores tradicionais russos, e que sua aceitação no Ocidente evidencia a decadência moral do bloco.
Na Rússia, pessoas trans tinham o direito de oficializar suas identidades perante o Estado nas esferas legais desde 1997. Agora, com a consolidação do projeto conservador e reacionário de Putin, essas pessoas passarão, oficialmente, a não existir. Suas identidades deixarão de ser passíveis de reconhecimento formal.
A dimensão da perversidade é ainda mais grave. Efetivamente, o que passa a vigorar é a proibição de pessoas trans acessarem terapias hormonais, bem como procedimentos cirúrgicos de redesignação. Profissionais de saúde serão impedidos de “realizar intervenções médicas destinadas a mudar o sexo de uma pessoa”, e os processos de adoção ou mesmo de criação de crianças serão interrompidos e revertidos. A lei também prevê a anulação de casamentos em caso de “mudança de gênero” de qualquer dos cônjuges.
Talvez seja importante notar que este ano marca uma década da aprovação da primeira lei “antipropaganda-lgbt” na Rússia. De lá para cá, a espiral de repressão contra essa população só tem aumentado. Outros países europeus também têm sido palco de ataques formais contra a comunidade.
A Hungria de Viktor Orbán proíbe, desde 2020, que casais LGBTI+ adotem ou criem crianças e, desde 2021, impede que qualquer tema LGBT seja mencionado em materiais didáticos. Agora, há até um “serviço anônimo de denúncia” de famílias LGBT ao Estado. Na Itália de Giorgia Meloni, onde o casamento ainda não é um direito civil, mas heterossexual, certidões de nascimento que registravam duas mães ou dois pais estão sendo alteradas para excluir lésbicas e gays dos documentos.
O que a extrema-direita mundial tem operado no campo da produção estatística é o apagamento sistemático desses dados. No Brasil, ainda há ausência de dados oficiais sobre a existência de pessoas LGBTI+. Diferentemente dos quilombolas, não sabemos quantos somos, em quais estados residimos, quais territórios ocupamos, nossas faixas etárias, graus de escolaridade, ocupações ou faixas de renda.
Não é possível sistematizar os ataques a uma população sem levantamentos estatísticos sobre ela. Se há, verdadeiramente, um interesse da democracia brasileira em produzir políticas públicas capazes de reverter os números estarrecedores de violência contra pessoas LGBTI+, é imprescindível haver compromisso com a produção desses dados.
E não se trata de pedir demais. Esta é a demanda mínima para que se possa caminhar no sentido oposto ao da barbárie. O Estado brasileiro não pode ter a mesma conduta de outros países que constroem políticas de morte para partes de sua população. •
Publicado na edição n° 1271 de CartaCapital, em 09 de agosto de 2023.
Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.
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