CartaCapital
Operação vingança
Em retaliação à morte de um soldado da Rota, a polícia paulista promove o maior morticínio no estado desde o revide aos ataques do PCC em 2006


Na quinta-feira 27, uma viatura das Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar, criada na ditadura para perseguir dissidentes políticos e depois convertida na tropa de elite da polícia paulista, foi recebida a tiros na comunidade Vila Zilda, em Guarujá, no litoral sul de São Paulo. O soldado Patrick Bastos Reis acabou atingido por um disparo de calibre 9 mm na região do ombro, e o projétil transfixou pelo peito. Parceiro do policial, o cabo Fabiano Oliveira Marin recebeu um tiro na mão esquerda. A guarnição conseguiu escapar da emboscada e ambos foram socorridos, mas Reis não resistiu ao ferimento e morreu. Descrito em uma nota de pesar da corporação como um “profissional dedicado, amigo e exemplar”, o PM deixou esposa e um filho de 3 anos.
O covarde ataque merecia uma resposta firme do Estado, mas o governador Tarcísio de Freitas, do Republicanos, optou por enfrentar a situação ao modo bolsonarista, com o disparo de uma bala de canhão. Ao todo, 600 agentes de equipes especializadas das polícias Civil e Militar foram mobilizados para atuar da Operação Escudo, supostamente destinada a encontrar os assassinos de Reis. Conversa fiada, melhor seria batizar a ofensiva como Operação Vingança. Até a quarta-feira 2, as incursões policiais em favelas do Guarujá e, mais tarde, na cidade de Santos haviam resultado na morte de 16 civis. Outros 58 foram presos – a maior parte deles, obviamente, sem qualquer relação com o homicídio. Os números foram divulgados pelo governo paulista, mas a Ouvidoria das Polícias não descarta a possibilidade de haver outras vítimas “esquecidas” pela contagem oficial.
Até a quarta 2, as incursões nas favelas da Baixada Santista resultaram na morte de 16 civis
No mundo civilizado, qualquer ação policial que resulte em morte é lamentada pelas autoridades. Na Tombstone nativa, não é assim que a banda toca. No domingo 30, ao celebrar a prisão do “autor do disparo” que matou Reis, o governador paulista alertou: “Nenhum ataque aos nossos policiais ficará impune”. Na manhã do dia seguinte, enquanto a Secretaria de Segurança Pública e a Ouvidoria das Polícias divergiam sobre o total de vítimas do sangrento fim de semana, oito ou dez mortos, Freitas disse estar “extremamente satisfeito” com a operação. Segundo ele, “não houve excessos”, foi uma ação “profissional”.
Ex-ministro de Bolsonaro e eleito com a promessa de retirar as câmeras das fardas dos PMs, medida que fez a letalidade policial despencar nos batalhões onde a tecnologia foi introduzida, o governador fez pouco caso das denúncias de tortura e execuções sumárias feitas por moradores das favelas sob cerco. Além do Ministério Público Estadual, a quem compete a tarefa de promover o controle externo da atividade policial, a Ordem dos Advogados do Brasil, a Comissão Arns e outras entidades de defesa dos direitos humanos prometeram fazer uma investigação paralela.
Pudera. Os relatos de moradores das comunidades invadidas por pistoleiros fardados são de arrepiar. Familiares de uma das vítimas, o vendedor ambulante Felipe Vieira Nunes, relatam que o corpo dele apresentava sinais de tortura, incluindo queimaduras com ponta de cigarro. Vizinhos teriam escutado súplicas do rapaz de 30 anos, implorando para não ser morto, instantes antes dos estampidos que o silenciaram. Outros relatam que parentes e amigos foram retirados de suas casas para ser executados.
Em maio de 2006, o revide policial aos ataques do PCC resultaram na morte de 108 civis. Em 2002, a emboscada armada pela PM numa rodovia matou 12 suspeitos de integrar a facção criminosa – Imagem: Moacyr Lopes Júnior/Folhapress e Maurício Lima/AFP
Ao portal Terra, uma mulher deu detalhes sobre a execução do marido, Cleiton Barbosa Moura, de 24 anos, que foi morto a tiros na Rua Operária, no Sítio Conceiçãozinha, em 29 de julho. No dia, a mulher estava trabalhando, enquanto o companheiro cuidava do filho, de 10 meses, em casa. “Dois policiais entraram e pegaram o neném. Levaram ele para trás do corredor. Se você for ver, ainda tem a poça de sangue. Deram um tiro de fuzil. Foi o que o matou”, relatou a viúva, que pediu para não revelar seu nome. Cleiton foi preso por tráfico de drogas em 2020, mas, segundo a esposa, não estava mais envolvido com o crime. “Ele nunca mais mexeu com drogas, estava trabalhando como ajudante de pedreiro. Estávamos pagando a casa e as contas. Agora, estou sozinha com cinco crianças. Como vou fazer?”
A Ouvidoria das Polícias também recebeu a denúncia de que um homem com diagnóstico de esquizofrenia teria sido abatido em meio a um surto psicótico. Segundo testemunhas, ele se envolveu em uma discussão no estacionamento de um mercado com dois policiais. Estava agitado e portava uma faca, mas não chegou a representar uma real ameaça à vida de ninguém. “Tem denúncias de policiais invadindo as casas encapuzados, aterrorizando as pessoas. Tem denúncias de agressões contra crianças e adolescentes. Moradores dizem que os policiais prometeram matar 60 pessoas, todos que tiverem alguma passagem na polícia”, enumera o ouvidor Cláudio Silva.
O secretário de Segurança Pública, Guilherme Derrite, nega a existência de tortura durante as incursões policiais na Baixada Santista. “Não passam de narrativas”, afirma. “Todos os exames realizados pelo Instituto de Medicina Legal não apontam indícios de qualquer singelo hematoma, muito menos de uma tortura de indivíduos que trocaram tiros com os policiais.”
A letalidade policial cresceu 26% nos primeiros seis meses do governo de Tarcísio de Freitas
A versão é refutada por militantes de direitos humanos que acompanham de perto a situação nas favelas da Baixada Santista. “Tive acesso a fotografias de vítimas da ação desta semana, cujos corpos estão marcados com queimaduras de cigarro. Então há, sim, evidências de tortura”, diz Douglas Belchior, da União de Núcleos de Educação Popular para Negros e Classe Trabalhadora, a Uneafro. “Tem policiais nas redes sociais avisando que haverá mortes nas próximas horas, nos próximos dias, e essa previsão se confirma na atuação policial. São ações deliberadas.”
De fato, há vários PMs zombando do morticínio nas redes sociais. Um perfil atribuído ao “Soldado Raniere”, do 21º Batalhão da Polícia Militar, chegou a publicar imagens da operação, celebrando os resultados como quem narra uma disputa esportiva: “Para o conhecimento, atualizando o placar até o momento: 12 x 1. Mais um vagabundo para a pedra, QRX Rede Radio Rota”. A Secretaria de Segurança Pública não se deu ao trabalho de responder ao jornal Brasil de Fato, o primeiro a noticiar o episódio.
Seria mesmo surpreendente se o governo paulista censurasse os policiais boquirrotos. Eles apenas verbalizam, talvez de modo mais explícito, o que pensa a cúpula da segurança pública no estado. “Aqueles que resolveram se entregar à polícia foram presos e apresentados à Justiça”, diz o governador Tarcísio, emulando uma antiga declaração de Geraldo Alckmin, então governador de São Paulo, para justificar outra chacina promovida pela Rota em um sítio de Várzea Paulista em 2012. “Quem não reagiu está vivo”, disse à época, ao comentar o saldo de nove mortos.
Com suas 16 vítimas (até a conclusão desta reportagem), a Operação Escudo já é a segunda maior chacina policial ocorrida no estado desde a virada do século, atrás apenas do revide aos ataques do PCC em maio de 2006, que resultaram na morte de 108 civis, segundo a Defensoria Pública. “Centenas de mães perderam seus filhos trabalhadores, estudantes e, mesmo que alguns deles estivessem envolvidos com o crime, não existe pena de morte no Brasil. O que existe é a criminalização de pobres”, lamenta Débora Silva, fundadora do movimento Mães de Maio, que até hoje luta por uma reparação do Estado. A incursão policial na Baixada produziu, porém, mais mortos que a Operação Castelinho, em 2002, fruto de uma emboscada armada pela PM contra integrantes do PCC em uma praça de pedágio no interior. Doze suspeitos de integrar a facção criminosa morreram na ação.
O ministro da Justiça, Flávio Dino, avaliou que a resposta do governo paulista ao assassinato de um policial foi claramente desproporcional, mas evitou bater boca com Freitas: “Temos de respeitar as autoridades estaduais, tanto do Poder Executivo, mas sobretudo agora do Poder Judiciário e do Ministério Público, aguardar o que eles vão apurar. E aí, sim, à luz do resultado da apuração tomar um posicionamento do governo federal”. A tragédia mancha, porém, a já desgastada imagem do Brasil no exterior. “Estamos preocupados com as mortes e pedimos uma investigação imediata, completa e imparcial, de acordo com os padrões internacionais relevantes”, afirmou Marta Hurtado, porta-voz do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos. “Os envolvidos devem ser responsabilizados.”
Patrick Bastos Reis, o soldado da Rota assassinado, deixou um filho de 3 anos – Imagem: Redes sociais
Mesmo sem considerar as recentes ocorrências no Guarujá e em Santos, a polícia sob a gestão Tarcísio de Freitas mata mais que no governo anterior. Dados da Secretaria de Segurança Pública mostram que 155 civis morreram em decorrência de intervenção policial de janeiro a junho de 2023, alta de 26% em relação ao mesmo período do ano passado. A tendência é aumentar ainda mais, sobretudo se o governador acatar o pedido de parlamentares bolsonaristas para remover as câmeras das fardas de PMs. “A bandidagem não pode ter essa vantagem”, escreveu nas redes sociais o deputado estadual Gil Diniz, do PL, conhecido como o Carteiro Reaça.
A “vantagem”, convém ressaltar, seria a necessidade de o policial agir dentro da lei por saber que suas ações estão sendo gravadas. Na campanha, Freitas prometeu acabar com as câmeras. Diante da ruidosa reação de especialistas em segurança pública, voltou atrás na decisão.
Considerando o comportamento dele diante do banho de sangue na Baixada Santista, não causaria espanto se o governador mudasse novamente de opinião. A esta altura, ele já deve ter notado: a única forma de cativar o eleitorado bolsonarista que o elegeu é dar carta branca para a polícia agir com sua habitual violência. A homenagem póstuma ao coronel Erasmo Dias, especialista em reprimir manifestações estudantis durante a ditadura, foi só a primeira manifestação da vocação autoritária do ex-ministro de Bolsonaro. •
Publicado na edição n° 1271 de CartaCapital, em 09 de agosto de 2023.
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