CartaCapital
Desobediência civil e militar
Reservistas unem-se às manifestações contra a interferência do primeiro-ministro no Judiciário


sAo longo de seus muitos anos de serviço, Zur Allon, de 46 anos, tenente-coronel reservista das forças especiais de artilharia de Israel, nunca imaginou que um dia se recusaria a se apresentar para cumprir seu dever. “Metade da minha companhia foi explodida no Líbano. Dei muitos anos da minha vida para defender este país”, disse Allon, um dos líderes do Irmãos e Irmãs em Armas, um grupo de pressão de mais de 60 mil reservistas das Forças de Defesa de Israel fundado no início deste ano em protesto contra a proposta do governo de revisão do Judiciário. “É por isso que estamos tão revoltados. O governo está quebrando um contrato muito simples que temos, de proteger um Israel judeu e democrático.”
As FDI foram concebidas pelo fundador do país, David Ben-Gurion, como “o exército do povo”: um caldeirão apolítico que reuniria israelenses de diversas origens étnicas, religiosas e socioeconômicas e levaria à construção de um senso de coesão social. Ao longo dos anos, essa visão foi diluída e as desigualdades e divisões na sociedade israelense se refletem na composição de suas forças armadas.
Cidadãos árabes de Israel não são recrutados e há uma longa batalha legal sobre se a comunidade ultraortodoxa deve ser isenta do recrutamento, mas o serviço militar ainda é uma parte definidora do caráter nacional. Talvez não seja surpreendente que ambos os lados do debate sobre as propostas para o sistema judicial recorram com tanta frequência a metáforas militares. O relativamente pequeno exército permanente de Israel depende fortemente de 465 mil reservistas, mesmo em tempos de paz, eles podem ser convocados por até 60 dias por ano. Grupos de unidades criticamente importantes, como pilotos, ameaçaram não servir no passado devido a questões como a retirada da Faixa de Gaza e a segunda guerra do Líbano. Mas o país nunca viu desobediência civil neste nível antes.
Os reservistas têm sido uma voz forte no movimento de protesto em Israel, desde que a coalizão de extrema-direita e religiosa do primeiro-ministro Benjamin Netanyahu anunciou mudanças judiciais radicais logo após assumir o cargo, em dezembro. Os defensores da reforma acreditam ser ela necessária para combater um viés de esquerda percebido nas decisões do tribunal não eleito, enquanto os críticos dizem que isso levará a um retrocesso democrático, como o visto na Hungria e na Turquia.
Há preocupações particulares entre os militares de que as propostas para o Judiciário possam expor oficiais a processos internacionais. Israel não integra o Tribunal Penal Internacional, argumentando que seu próprio sistema jurídico investiga adequadamente as acusações de irregularidades cometidas pelas forças armadas, embora palestinos e grupos de direitos humanos digam há muito tempo que o número muito baixo de acusações nas investigações israelenses sugere que a prática atual não é adequada.
No mês passado, mais de 10 mil reservistas assinaram uma carta pública, na qual pedem para ser dispensados do serviço se a coalizão levasse adiante o primeiro elemento importante da legislação, aprovada por 64 a zero no Knesset (Parlamento) na segunda-feira 24, depois de todos os integrantes do governo votarem a favor e a oposição boicotar a votação em protesto.
Agora a questão é se os reservistas cumprirão essa promessa, uma ação coletiva que pode afetar gravemente a prontidão operacional das FDI. “Não há outra opção senão recusar o serviço. Até agora, as manifestações falharam: o governo seguiu em frente de qualquer maneira. Teremos de tomar medidas mais duras”, disse Yair Golan, major-general reservista e ex-vice-ministro da Economia, do partido de esquerda Meretz. “Os israelenses sabem estabelecer prioridades. É difícil prever o que acontecerá se uma ameaça externa aparecer. Mas agora a primeira prioridade é manter Israel como um estado democrático e lutar contra este governo.”
Netanyahu, associado à extrema-direita, solapa as bases democráticas do país
Várias centenas de reservistas notificaram seus comandantes de que não desejam mais ser convocados para o serviço. Ao mesmo tempo, houve relatos de que outros reservistas haviam se oferecido para o serviço extra, a fim de aliviar os efeitos das recusas. Em declarações públicas nos últimos meses, as FDI tentaram minimizar a crise. Mas, na segunda-feira 24, à noite, após a votação, houve um reconhecimento público de que os comandantes estavam preocupados com o fato de que, “se os reservistas não comparecerem para o serviço de reserva em longo prazo, a prontidão dos militares será prejudicada”.
Na sexta-feira 28, a mídia em língua hebraica foi dominada pela notícia de que a diretoria de inteligência das FDI havia alertado Benjamin Netanyahu nada menos que quatro vezes antes da aprovação do projeto de lei de que o Irã e o grupo militante libanês Hezbollah veem uma “oportunidade histórica” na crise doméstica de Israel, citando uma “grande erosão na dissuasão básica”.
Não está claro se o primeiro-ministro e seu gabinete compreenderam totalmente a crise que se desenrola nas forças armadas. Netanyahu, ex-capitão de uma unidade de elite das forças especiais, tem criticado particularmente a oposição vinda das FDI, apontando que, numa democracia, os militares recebem ordens do governo, não o contrário.
O ministro da Defesa, Yoav Gallant, tido como o mais ferrenho crítico da reforma nas bancadas do governo, em parte por seu papel de intermediário entre as forças armadas e os políticos, desperdiçou qualquer boa vontade do movimento de protesto em relação a ele ao votar de acordo com o resto da coalizão na segunda-feira. Gallant não respondeu a um pedido de comentário sobre o colapso crescente nas relações entre as forças militares e o governo.
O próprio Netanyahu, por tanto tempo uma figura dominante na política, mas agora atormentado por acusações de corrupção, às vezes parece fraco, contente em deixar seus parceiros de coalizão definirem a agenda. Os militares não são a única dor de cabeça do primeiro-ministro: possíveis rebaixamentos de crédito internacional, um êxodo da indústria de tecnologia, greves generalizadas e disputas legais sobre o futuro da reforma – tudo isso paira antes da reunião do Knesset em outubro.
O movimento de protesto de Israel também precisa fazer um exame de consciência, afirma Golan. “Esta é a maior crise para a sociedade israelense desde a guerra do Yom Kippur”, disse, em referência ao lançamento de um ataque-surpresa por seus vizinhos árabes em 1973. “Não tenho dúvidas de que Israel não será o mesmo depois disso, e esse é o desafio. Não se trata apenas de protestos: precisamos construir algo positivo a partir disso e trabalhar para um futuro melhor.” •
Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves.
Publicado na edição n° 1271 de CartaCapital, em 09 de agosto de 2023.
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