Economia
Pés de jabuticabas
A regulamentação da mudança dos impostos do consumo exige atenção com os penduricalhos


O anúncio pelo ministro da Fazenda, Fernando Haddad, do projeto de tributar os fundos usados por 3,5 mil super-ricos para proteger dos impostos um patrimônio conjunto de 877 bilhões de reais e a declaração do presidente da Câmara, Arthur Lira, de que prefere deixar esse assunto para depois da promulgação da primeira parte da reforma tributária, da carga sobre o consumo, com prazo até dezembro, são um prenúncio da guerra prevista para a segunda etapa do processo, relativa à renda e ao patrimônio. Segundo economistas e parlamentares, ao contrário do que ocorrerá na segunda fase, a reforma dos tributos sobre o consumo, aprovada no começo do mês, estava em discussão há décadas, contava com o apoio maciço dos grandes setores econômicos e da mídia e não mexia com o acúmulo de riqueza.
A segunda etapa da reforma corre, portanto, um risco maior de não dar certo do que a primeira, e algumas armadilhas e cascas de banana colocadas no caminho da regulamentação daquilo que foi aprovado sugerem uma dificuldade muito maior adiante, para tributar os mais ricos.
A definição da tributação dos bancos deveria contemplar um aumento em relação à alíquota-padrão
O deputado Guilherme Boulos, que está no centro das articulações voltadas para a ampliação da progressividade da reforma, destaca a necessidade de se ter muita atenção em relação a “uma etapa decisiva antes da parte sobre tributação de renda e patrimônio”, quando a PEC da tributação sobre o consumo será detalhada com projetos de lei complementares. Boulos cita dois pontos, entre vários, que ficaram indicados na PEC e serão votados no segundo semestre. Um deles é o cashback. Não se chegou a uma formatação desse dispositivo na PEC. “Temos de ter muita atenção para o Projeto de Lei Complementar, porque é um instrumento redistributivo que pode ser incluído na parte do consumo. Mas precisa ser bem modelado, bem construído”, sublinha o deputado.
O segundo ponto a exigir atenção, considerando-se o poder que o sistema financeiro exerce sobre o Parlamento, é a definição da alíquota do setor. “Isso ficou de ser estabelecido por um PLC, também no segundo semestre. Temos de trabalhar para que seja uma alíquota para cima. O que é descabido é que a alíquota dos bancos fique abaixo da alíquota-padrão do IBS, do IVA. É indispensável dedicar atenção especial ao PLC do sistema financeiro”, ressaltou Boulos, em debate com a participação de economistas e representantes da Câmara organizado pelo Instituto para a Reforma das Relações entre Estado e Empresa, o IREE.
Desafio. Haddad quer um naco das aplicações de 3,5 mil privilegiados – Imagem: Marcelo Camargo/ABR
Um aspecto que requer muito cuidado na regulamentação é a desoneração da cesta básica, sublinhou o economista Davi Deccache, assessor da bancada de deputados federais do PSOL. “Hoje, ela é um grande problema, porque tem 1.380 itens, alguns deles geradores de externalidades negativas porque são alimentos às vezes ultraprocessados e cheios de agrotóxicos, que deveriam ser taxados não só na alíquota-padrão, mas com o imposto seletivo, para desestimular a produção desses itens”, dispara Deccache.
O assessor condena a abertura de uma brecha para esses produtos não pagarem imposto sobre bens e serviços com a desculpa de que há benefício para o conjunto da sociedade, o que implica, a seu ver, dois erros. O primeiro é que a desoneração da cesta básica, ao contrário do que os supermercados dizem, não é repassada integralmente aos preços. Segundo um estudo, de cada 1% de redução do ICMS, há repasse de apenas 13% para os preços. “Boa parte desses benefícios fiscais vira margem de lucro”, aponta o economista. “A lei complementar tem de ser muito rigorosa. Caso contrário, haverá ampliação de margem de lucro para setores geradores de externalidades negativas e essa margem de lucro vai ser paga com uma alíquota mais alta. É importante perceber o problema: nós temos aí um embrião de aumento da regressividade e esse ponto deve ser muito bem debatido na hora de formular a legislação complementar.”
No meio do caminho do IPVA para aviões e barcos, passou a isenção para aeronaves agrícolas, denuncia Jefferson Nascimento, coordenador de Justiça Social e Econômica da Oxfam Brasil, parte da rede mundial dedicada à ampliação da justiça e do desenvolvimento. Outro problemão destacado por Nascimento: a compra de armas com alíquota reduzida, que entrou na última hora na emenda aglutinativa e sabota o esforço de desarmamento do governo. Não foi a única distorção. “No texto original, afirmava-se que um dos objetivos da devolução do cashback era a redução da desigualdade de renda, raça ou gênero. No debate que aconteceu no dia seguinte à votação, retirou-se raça e gênero. Era uma das poucas referências a isso e foi `limada´ do texto.”
Deccache ressalta: “A PEC menciona a cobrança do IPVA de veículos automotores, que seriam jatinhos e helicópteros. Mas a proposta cria duas imunidades que podem tornar letra morta o dispositivo. Essas aeronaves, se tiverem certificado para prestar serviços a terceiros, não pagarão ICMS. Basta o seu proprietário criar um CNPJ, se não tiver, e a maioria tem”. Quanto ao IPVA sobre embarcações, iates, lanchas e jet-skis incluídos, acrescenta o economista, há imunidade para quem praticar pesca artesanal. “Todos os proprietários dessas embarcações vão, portanto, virar pescadores artesanais. É claro que vão utilizar essas duas brechas, se elas permanecerem.” Além disso, acrescenta Nascimento, tratores e máquinas agrícolas entraram também com as aeronaves agrícolas e, do jeito que o texto está, escaparão do IPVA.
O desfecho dos Projetos de Lei Complementares dependerá, entretanto, da aritmética implacável da correlação de forças na Câmara, extremamente desfavorável às pautas voltadas para a redução das desigualdades. “A aprovação do IVA foi um avanço importante. Sabemos qual é o jogo de pressões. Não chegamos ao resultado possível dentro de um Congresso que não tem maioria progressista, com 135 deputados de esquerda em uma Câmara de 513 parlamentares. Apesar de todos os poréns e dificuldades, considero, contudo, que tivemos um avanço, por termos aprovado a reforma do IVA sem grandes distorções”, conclui Boulos, que alerta para a necessidade de “total atenção” na fase de regulamentação via PLCs.
A pressão da bancada ruralista resultou em uma alíquota especial de 60% de redução para insumos agrícolas, inclusive agrotóxicos
“Claro que houve problemas”, prossegue o deputado, “como uma pressão da bancada do agro, que acabou colocando uma alíquota especial de 60% de redução para insumos agrícolas de forma geral, onde entram os agrotóxicos, e aí a gente tem um problema que vai na contramão do que se discute hoje nos sistemas tributários no mundo, que é uma tributação mais elevada sobre agrotóxicos, inclusive na perspectiva de uma tributação verde”, dispara o deputado. Há, segundo ele, o fato objetivo de que a frente parlamentar da agricultura tem cerca de 300 deputados inscritos. “A vida é dura. Mas eu acho que conseguimos avanços nada desprezíveis, como o IPVA para aquáticos e aéreos, iates, jatinhos, helicópteros, jet-skis. O motoboy paga o IPVA da sua moto e os donos de jet-ski e jatinhos não pagam.”
“A vinculação de que em seis meses o governo tem de apresentar a reforma da renda e do consumo é uma coisa muito boa, pode reduzir a proporção de incidência de impostos sobre o consumo, os mais injustos. Vincular ao orçamento também é bom. Mas o governo deve aprender com a reforma que Guedes fez. E se tiver alguma moeda de troca com o setor econômico, que seja em cima da redução da tributação do consumo. Não em cima da redução da tributação sobre as pessoas jurídicas. Só 3% dos que optam pelo lucro real é que pagam”, destaca o economista Eduardo Fagnani, da Unicamp.
Penduricalhos. Na regulamentação da reforma, é preciso ficar de olho na tributação do setor financeiro e nas benesses aos agrotóxicos – Imagem: Miguel Schincariol/AFP e Renato Luiz Ferreira
Nas últimas semanas, o governo conseguiu aprovar várias medidas de combate a privilégios, entre elas a reformulação do preço de transferência, que permitia enormes ganhos para multinacionais com o subfaturamento de fornecimentos às matrizes no exterior. “Além da aprovação da tributação sobre iates e jatinhos, que incide sobre o patrimônio, discute-se a atualização das plantas de valores no IPTU feitas pelas prefeituras, sem precisar passar pelo Legislativo, fundamental para maior justiça tributária nos municípios”, ressalta Guilherme Mello, secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda. “Um dado animador é que os ausentes desse debate, organizações de outros campos como a saúde, a redução da violência, entraram em contato para pedir mais informações sobre a reforma tributária”, comemora Nascimento.
“Esta é uma questão importante, do esclarecimento da população, que se dê voz a eles, de modo que o debate reflita os seus interesses”, reforça o economista Luiz Gonzaga Belluzzo, consultor editorial desta revista e coordenador do debate. “Não estamos fazendo isso direito, não. Tínhamos de encontrar formas de se pressionar os representantes pelos representados. Estamos esquecendo a importância da difusão do debate público.” •
Publicado na edição n° 1270 de CartaCapital, em 02 de agosto de 2023.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Pés de jabuticabas’
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