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L de quem?

A aliança entre Lula e o Centrão de Lira inaugura nova fase na “governabilidade” e isola o bolsonarismo

L de quem?
L de quem?
Etiqueta. Lula e Lira se viram forçados a estabelecer as regras mínimas de coabitação na Praça dos Três Poderes. Sabino, do União Brasil, é o novo ministro do Turismo – Imagem: Roberto Castro/MTur e José Cruz/ABR
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Com sua expulsão anunciada pelo PL após “fazer o L” durante um evento em companhia de ministros petistas, imagem que vazou nas redes sociais, o deputado federal cearense Yuri do Paredão sintetizou, sem qualquer intenção, o atual momento político em Brasília. A aliança entre partidos do Centrão, sob as bênçãos de Arthur Lira, presidente da Câmara dos Deputados, e o governo Lula, que deverá se concretizar nos próximos dias com o anúncio de uma dança das cadeiras no primeiro escalão e a entrada de PP e Republicanos na equipe ministerial, promete imprimir uma nova dinâmica à “frente ampla”. Na análise de parlamentares governistas, a composição permitirá ao Palácio do Planalto firmar uma base permanente e em número suficiente para aprovar as principais matérias de seu interesse. O presidente da República precisará, no entanto, administrar a insatisfação de aliados de primeira hora, obrigados a ceder espaço aos “neolulistas”.

A grande dúvida é saber quem fez o L: Lula ou Lira? Segundo parlamentares e especialistas, a adesão de legendas antes na oposição não surpreende, dado o funcionamento do presidencialismo de coalizão que conduz a política nacional desde o fim da ditadura. “A partir da entrada desses partidos no governo, a ultradireita se perde. Isso estava em debate no segundo turno das eleições, quando foi dito claramente que precisávamos de uma frente ampla para derrotar o neofascismo no Brasil. Essa frente ampla faz parte do L, e o Centrão faz o L do governo Lula no seu aspecto de ampliação do isolamento do bolsonarismo”, aposta o deputado Rogério Correia, do PT de Minas Gerais. O ministro da Justiça, Flávio Dino, lembra a força do atual Congresso e sua composição majoritariamente reacionária antes de afirmar a importância da ampliação da base de apoio. Dino cita o alemão Max Weber e seu conceito de “ética do resultado” para justificar as mudanças no primeiro escalão.

Vai “fufuncionar”? Padilha recebe André Fufuca, nome do PP para uma vaga – Imagem: Gil Ferreira/SRI

Em princípio, segundo as tratativas entre Lira, lideranças dos partidos envolvidos e o ministro das Relações Institucionais, Alexandre Padilha, os deputados federais Silvio Costa Filho, do Republicanos, e André Fufuca, do PP, serão ministros, só não sabe ainda de quais pastas. Os dois vão se juntar a Celso Sabino, do União Brasil, acomodado no Ministério do Turismo no lugar da deputada federal Daniela Carneiro e, espera-se, trarão a prometida tranquilidade na Câmara. Pelos cálculos do líder do governo, ­deputado José Guimarães, do PT do Ceará, a nomeação dos dois novos ministros garantirá ao menos 30 votos fiéis em cada uma das legendas. Guimarães contabiliza ainda 50 votos no União Brasil. “Não é um apoio programático, mas é o que temos para hoje. Se Lula não fizer isso, não tem voto no Congresso e, pior, pode começar a ter todas as suas propostas derrubadas. Nessa hora, o governo precisa ser pragmático e dançar conforme a música”, avalia o cientista político Cláudio Couto, colunista do site de CartaCapital. O Centrão, lembra Couto, apoiou todos os governos desde o fim da ditadura. “Não há nada de novo ou surpreendente. Obter o apoio dos partidos de adesão é uma característica do próprio presidencialismo de coalizão. Eles apoiam qualquer governo, desde que haja algum tipo de retribuição. É assim que operam e sem isso o governo Lula não teria maioria.”

O cientista político João Feres Jr., coordenador do Laboratório de Estudos de Mídia e Esfera Pública da Universidade Estadual do Rio de Janeiro, ressalta que “os dois Ls são muito diferentes” entre si: “O L de Lula é um projeto de país, uma concepção de governo e de Estado voltado para a inclusão. Já o L de Lira é somente o poder do presidente da Câmara dentro da Câmara, sobre os outros deputados e partidos. Lira não tem um projeto de país, é levemente conservador, privatista e neoliberal, mas sem muita convicção”. Feres questiona se os partidos do Centrão deixarão de apoiar Bolsonaro após o acordo. “Esta é uma questão em aberto, mas é inegável reconhecer que a lógica da reeleição prevalece na massa de representantes conhecidos como baixo clero. É uma questão até conceitual: para ser baixo clero, não dá para ser muito ideológico. Assim, a maior parte desses deputados, na busca por sobrevivência, tende a estar aberta à influência de quem controla o orçamento, ou seja, o Executivo.”

Os petistas esperam contar com ao menos mais 110 votos no Congresso

O martelo sobre as mudanças no ministério só será batido após uma reunião entre Lula e o presidente da Câmara, que, segundo Guimarães, deve acontecer “a qualquer momento”. Segundo Lira, a decisão sobre a reforma ministerial “é prerrogativa do presidente da República” e não dos partidos. “Não é só o PP. É o governo que tem de discutir quem, quando e de que forma. Eu penso que esse assunto está sendo, de certa forma, atropelado, o que não ajuda a governabilidade.” Lira promete “funcionar como um facilitador” das discussões. “Quanto mais o governo tiver facilidade no plenário, melhor para eles e melhor para mim.” Lula, em sua entrevista semanal realizada na terça-feira 25, afirmou não existir uma conversa com o Centrão enquanto organização. “Eu quero conversar com o PP, com o Republicanos, com o PSD, com o União Brasil. É assim que a gente conversa.” Para o presidente, é normal que as legendas negociem apoio em troca de participação no governo. “Você tenta arrumar um lugar para colocar, para dar tranquilidade ao governo nas votações que nós precisamos para melhorar e aprimorar o funcionamento do Brasil. É exatamente isso que vai acontecer.”

Além das conversas com Lira e demais líderes do Centrão, o petista deverá dedicar-se a aplainar a insatisfação dos partidos de esquerda que provavelmente perderão espaço na Esplanada dos Ministérios. Presidente do PT, a deputada ­Gleisi Hoffmann diz que a legenda não gostaria de ver diminuído o seu quinhão, mas, “se for necessário à governabilidade, não faltará ao presidente”. A mesma boa vontade não foi demonstrada pelo líder do PSB, Carlos Siqueira. “Discordo completamente da ideia de se fazer um acordo através de ministérios com o Centrão. Se Lula ceder espaço àqueles que apoiaram Bolsonaro nas últimas eleições, quem perde é o Brasil.” O PSB corre o risco de ficar sem o Ministério dos Portos e Aeroportos, ocupado por Márcio França, que seria remanejado para outro posto. Outra possibilidade é abrir mão do Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio, que tem no comando o vice-presidente Geraldo Alckmin. Flávio Dino, também do PSB, é da cota pessoal de Lula.

Cabe todo mundo. Costa Filho é a sugestão do Republicanos. Guimarães, líder do PT, prevê um desfecho para breve – Imagem: Douglas Gomes/PRB Liderança e Gabriel Paiva/PT na Câmara

Para o deputado federal Orlando Silva, do PCdoB de São Paulo, o governo acerta ao atrair novos apoios: “A base no Congresso vai se consolidar aos poucos e exigirá o engajamento de todo o governo”. Haverá o sacrifício dos aliados de sempre? Silva não sabe, mas filosofa: “O certo é que, na política, como na física, dois corpos não ocupam o mesmo espaço ao mesmo tempo. Penso que a presença no governo deve refletir o tamanho das bancadas no Congresso, além de outros fatores políticos. Não me parece lógico haver lugar intocável nem ministro ‘imexível’”. Nas atuais negociações, o PCdoB pode perder o Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação, chefiado pela ex-presidente do partido, Luciana Santos, que também seria remanejada a outro posto.

Coordenador do Laboratório de Estudos sobre Estado e Ideologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Luiz Eduardo Motta afirma que o crescimento do Centrão reflete aquilo que o pensador marxista grego Nicos Poulantzas alertava no fim dos anos 1970 sobre o declínio do Parlamento, que progressivamente deixa de tratar de questões amplas e leis nacionais para cuidar de aspectos locais ou interesses particulares. “O Centrão expressa os interesses do bloco do poder, do conjunto das frações de classe que detêm o poder econômico e têm interferência no campo político, sejam industriais, banqueiros, empresários, religiosos, agronegócio ou grandes corporações. São aqueles que financiam as campanhas dos ­deputados. O Centrão é a expressão do clientelismo que se constituiu com muita força a partir do período da ditadura.”

Lula terá de administrar a insatisfação dos aliados de primeira hora, a começar pelo PSB

Os deputados do bloco, acrescenta Motta, têm uma visão pragmática em relação aos governos e a convivência com esse setor será imprescindível enquanto as forças políticas progressistas não forem majoritárias no Congresso. “A adesão de União Brasil, PP e Republicanos é parte do problema que temos com o presidencialismo de coalizão. A esquerda no Brasil nunca conseguiu ser majoritária. Mesmo no segundo governo Lula, com a eleição de uma grande bancada, não havia maioria suficiente para controlar o Parlamento.” A estratégia do presidente, avalia o especialista, pode ser repetir o feito de Leonel Brizola, quando eleito govenador do Rio de Janeiro em 1982. “O governo Brizola, no Rio, nunca teve maioria na Assembleia Legislativa. Mas, com muita habilidade, conseguiu costurar um conjunto de alianças que atenderam os interesses dos deputados clientelistas. Contudo, eles nunca obtinham cargos decisivos ou estratégicos no Executivo. O PT agora busca seguir isso à risca.”

Nas definições nos próximos dias estarão sobre a mesa e podem ser oferecidos ao Centrão cerca de 400 cargos de segundo e terceiro escalões. Entre os órgãos especulados como moeda de troca estão a Caixa Econômica Federal e os Correios. Para Correia, não existe, porém, risco de a “espinha dorsal” do Executivo se envergar. “Há áreas muito importantes para se garantir o programa de divisão de renda, combate à fome e acesso à educação e à saúde pública, entre eles o Bolsa Família na assistência social e os postos relativos às questões econômicas. Aí, mais que partidos, é preciso ter gente da confiança do presidente para tocar as questões, como tem feito o ministro Fernando Haddad. Nas demais áreas, é possível negociar com o Centrão desde que o programa de governo seja respeitado.” •

Publicado na edição n° 1270 de CartaCapital, em 02 de agosto de 2023.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘L de quem?’

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