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Vozes pioneiras

Dóris Monteiro e Leny Andrade foram duas das primeiras intérpretes do Brasil a emprestar ao samba um toque de jazz

Vozes pioneiras
Vozes pioneiras
Vidas paralelas. Dóris (à esq), que tinha 88 anos, lançou seu primeiro disco em 1951. Leny (à dir.) tinha 80 anos e estreou em 1961. Ambas morreram no mesmo dia, no Rio de Janeiro, e foram veladas juntas – Imagem: Arquivo Nacional/Correio da Manhã
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Coitado do meu samba, mudou de repente/ influência do ­jazz, entoa Carlos Lyra na canção Influência do Jazz, que ironiza os protestos nacionalistas que apontavam a bossa nova como uma submissão dos brasileiros ao gênero norte-americano por excelência – na composição, Lyra faz uso de elementos jazzísticos para reforçar a brincadeira.

O ritmo eternizado por Duke ­Ellington foi também a influência comum a marcar duas estupendas intérpretes brasileiras mortas na segunda-feira 24, de causas naturais, no Rio de Janeiro: Dóris Monteiro e Leny ­Andrade. A primeira tinha 88 anos e a segunda, 80. Amigas, ambas foram veladas juntas, em cerimônia aberta ao público no Theatro Municipal do Rio de Janeiro.

Dóris, que começou a carreira no fim dos anos 1940, fez a transição da interpretação derramada do samba-canção para o estilo suave da bossa nova – que trazia muito desse canto ao pé do ouvido eternizado por nomes de proa do jazz, como Nat King Cole e Chet Baker.

Leny, por sua vez, utilizou-se de outros elementos do gênero, como a improvisação e o scat singing, uma espécie de canto falado, no qual as vocalizações substituem as palavras.

Esse foi, porém, apenas o ponto de partida para duas intérpretes que traziam impressas em seu DNA as vozes privilegiadas e que sempre se abriram para o novo.

A carioca Adelina Dóris Monteiro foi revelada em 1949, aos 16 anos, no programa Papel-Carbono, da Rádio Nacional, do Rio de Janeiro. Uma de suas características mais marcantes – além da preferência por “canções mais mexidinhas”, como afirmou certa vez – foi a interpretação mais suave.

Ela era bossa nova bem antes de o gênero surgir, quase uma década depois. Dóris gravou seu primeiro disco em 1951: Todamérica, que trazia como destaque Se Você se Importasse, do compositor Peterpan.

O período áureo de Dóris Monteiro como intérprete deu-se de 1961 a 1978, quando foi contratada pelas gravadoras Philips e EMI Odeon. Por essa última, lançou trabalhos antológicos como Mudando de Conversa, de 1969 (a faixa-título era um dos cavalos de batalha de sua carreira) e Dóris, de 1971.

Dóris Monteiro ganhou o epíteto de “musa do sambalanço”, gênero que deu um tratamento mais suingado ao samba, e tinha nele sua fonte principal de inspiração. Gravou canções dos então iniciantes Francis Hime (Sem Mais Adeus) e Chico Buarque (Meu Refrão) em seu álbum de 1966 e abraçou movimentos como a pilantragem, ao gravar Nonato Buzar e Carlos Imperial.

Enquanto Dóris incorporou o estilo do canto ao pé do ouvido, Leny aderiu à improvisação e ao scat singing

E ela desenvolveu ainda, paralelamente à vida de cantora, a carreira como atriz. Dóris atuou em dez filmes brasileiros nos anos 1950 e 1960 – entre eles, Agulha no Palheiro (1953), de Alex Viany, e A Carrocinha (1955), no qual atuou ao lado de Mazzaropi.

Leny de Andrade Lima, ou simplesmente Leny Andrade, também começou cedo. Sua mãe desejava que a filha se tornasse uma concertista de piano. O destino dela, contudo, já estava traçado desde os 9 anos, quando participou no ­Clube do Guri, da Rádio Globo.

Ali, impressionou a todos ao cantar a dramática Risque, de Ary Barroso. Aos 16 anos, Leny já andava pelos palcos do ­Beco das Garrafas, tradicional ponto da boemia do Rio de Janeiro – e um dos locais em que abraçou, com entusiasmo, os primeiros passos da bossa nova.

Leny estreou em disco dez anos depois de Dóris, em 1961, com o álbum A Sensação. Quatro anos depois, uniu-se ao cantor Pery Ribeiro e ao grupo Bossa 3 no show Gemini V, que foi “exportado” para o México, país em que morou por seis anos. Leny ainda morou em Nova York, onde suas performances cativaram admiradores do quilate de Tony Bennett (morto na semana passada) e Liza Minelli.

Em 1973, pouco depois de retornar ao Brasil, Leny Andrade lançou Alvoroço, um dos principais trabalhos de sua discografia, no qual substitui o balanço da bossa nova pelos autores locais e pelo enfrentamento, por meio da música, da ditadura instaurada no País. O álbum traz arranjos de Arthur Verocai, Wagner Tiso e Francis Hime, entre outros, e traz composições de João Nogueira e Paulo César Pinheiro, Ivan Lins e Ronaldo Monteiro, e da dupla Belchior e Fagner.

Leny, dona de uma voz aveludada, traz em sua discografia trabalhos dedicados aos standards do jazz americano e parcerias com dois instrumentistas brasileiros radicados no exterior: o violonista Romero Lubambo e o pianista e arranjador César Camargo Mariano – Nós, álbum de piano e voz com Mariano, lançado em 1993, é um dos clássicos de sua discografia.

Dóris Monteiro e Lenny Andrade se mantiveram na ativa mesmo depois que o mercado de discos virou as costas para elas e cantaram por toda a vida.

Leny lançou projetos que iam de releituras de Cartola e Nelson Cavaquinho a criações do compositor Altay Veloso e uma compilação de canções de Roberto Carlos cantada em espanhol. Seu último disco, Bossa Nova – Leny Andrade Canta Fred Falcão, foi lançado em 2018.

Dóris, por sua vez, chegou a cair no gosto dos DJs e dos admiradores do samba-rock. A canção É Isso Aí, por exemplo, ganhou um remix dançante e chegou a invadir as pistas de dança. Seu último disco foi As Divas do Sambalanço, de 2020, registro de uma apresentação ao lado de Claudete Soares e Eliana Pittman. Ela tinha ainda planos de gravar um tributo ao compositor Marcos Valle.

Pobre samba meu, como entoaria Carlos Lyra, que perde duas de suas vozes. •

Publicado na edição n° 1270 de CartaCapital, em 02 de agosto de 2023.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Vozes pioneiras’

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