Cultura
O gosto pela mistura
Aos 70 anos, Julie Taymor, a encenadora por trás do musical de maior sucesso da história, segue a correr o mundo para acompanhar as novas montagens de ‘O Rei Leão’


Quando a Disney colocou em prática a ideia de levar O Rei Leão (1994) para os palcos da Broadway, a escolha de Julie Taymor para encabeçar o projeto parecia um tanto arriscada. Ela tinha tão pouca experiência com o universo de Richard Rogers & Oscar Hammerstein, Cole Porter e Stephen Sondheim que parecia loucura dar a ela a responsabilidade de recriar a savana africana para o mundo dos musicais.
“Mas Julie era a única opção que eu tinha”, diz Thomas Schumacher, presidente da divisão de Teatro da Disney. A estratégia deu certo: O Rei Leão, que estreou, com badalação, na quinta-feira 20 de julho no Teatro Renault, em São Paulo, não só se tornou um dos maiores fenômenos do gênero como também consagrou Julie como uma grife.
“Não tenho receio de afirmar que O Rei Leão criou uma linguagem que influenciou musicais e peças de teatro que vieram a seguir”, diz a diretora a CartaCapital, durante sua passagem por São Paulo para acompanhar a nova montagem. Essa linguagem é marcada pela incorporação, pela Broadway, de elementos do teatro de sombras, do folclore, da mímica e da manipulação de bonecos.
Julie, hoje com 70 anos, mantém-se vigorosa e não se incomoda – e até gosta – de encarar longas horas de voo para conferir, de perto, as versões locais da montagem que já passou por 70 países e foi vista por 100 milhões de pessoas. “O trabalho do artista é levar as pessoas para lugares onde eles não sabiam que deveriam ir”, diz.
Nascida em Newton, cidade do estado de Massachusetts, em 1952, em uma família de situação financeira bastante confortável, Julie, que, além dos musicais, dirige óperas e longas-metragens, gosta de contar que tinha apenas 7 anos quando começou a encenar suas peças favoritas para a família. Três anos depois, entraria para um grupo infantil de teatro na cidade de Boston.
A adolescência e a vida universitária foram enriquecidas por programas de intercâmbio na Índia e no Sri Lanka, estudos de mímica em Paris e a graduação de folclore e mitologia na Faculdade de Oberlin, em Ohio. Já formada, ainda se aventurou em estudos de manipulação de bonecos no Japão e criou uma companhia de teatro na Indonésia. Desse caldo extraiu sua visualidade característica.
“Certa vez, em Bali, vi uma cerimônia em que as pessoas levavam oferendas na cabeça. Foi dali que tirei a ideia de criar gramas móveis para o cenário de O Rei Leão. Os atores levam esse artefato em suas cabeças e eles vão se movendo juntamente com a ação”, descreve.
“Como mulher, vejo muitas coisas importantes acontecendo, mas as posições principais da indústria ainda são restritas para nós”
Seu primeiro trabalho de peso como encenadora foi Oedipus Rex, ópera-oratório criada na década de 1920 por Stravinski e Jean Cocteau, que ela levou aos palcos em 1993, com figuras gigantescas cobertas por máscaras. “Parti da ideia original de Stravinski e Cocteau, que pediam que os personagens fossem ‘notoriamente extravagantes’”, explica.
Em uma das cenas, quando Édipo, ao descobrir que havia matado o pai e cometido incesto, fura os próprios olhos, a máscara é espetada por um alfinete. A única pessoa do elenco a não usar uma máscara foi a soprano Jessye Norman. “Eu queria que a voz de Jessye ressonasse de modo perfeito e isso não poderia ser feito através de máscaras”, declarou Julie numa conversa com a apresentadora Oprah Winfrey.
Quatro anos depois, em 1997, ela faria sua versão de O Rei Leão, que lhe renderia um prêmio Tony, o primeiro dado a uma mulher pela direção de um musical. Seu nome ia se sedimentando sem que isso significasse a diminuição de sua inquietude.
Em 1999, ela inseriu características do Teatro Kabuki à peça A Flauta Mágica, de Mozart, e transpôs Titus Andronicus, de Shakespeare, para o cinema, unindo artefatos do Império Romano a carros e microfones. À época, a sanguinolência protagonizada por Anthony Hopkins, e marcada pela presença de cenas de estupro, mutilações e canibalismo, recebeu algumas críticas. “É violento, mas não chega a ser um Quentin Tarantino”, defende-se, rindo.
Ao banho de sangue shakespeariano seguiram-se, no cinema, dois longas-metragens de aparência mais leve, mas com temas contundentes: Frida (2002), cinebiografia da pintora Frida Kahlo, e Across the Universe (2007) que, a partir de canções dos Beatles, percorre os anos 1960. “Eles fizeram parte da trilha sonora da minha infância e adolescência, assim como o conflito no Vietnã”, diz, sobre o segundo filme.
Nessa trajetória marcada pelo sucesso – Rei Leão é apontado como o musical mais rentável da história, no mundo –, Julie tem ao menos um fracasso famoso. Coube a ela, por exigência de Bono, do U2, a direção de Spiderman: Turn off the Dark, levado aos palcos da Broadway em 2011.
O musical foi tão massacrado que saiu de cartaz antes de completar dois anos e gerou um prejuízo estimado em 60 milhões de dólares. “Era um espetáculo à frente de seu tempo. Falávamos de fake news, de bioterrorismo… Mas eu tenho uma mensagem de Stan Lee, criador de O Homem-Aranha, dizendo o quanto gostou do espetáculo”, diz.
Embora seu mais recente filme, As Vidas de Glória (2020), seja sobre a jornalista, escritora e pensadora feminista Gloria Steinem, e em sua versão de A Tempestade (2010) Próspero seja uma mulher (Helen Mirren), Julie, ao menos nas conversas organizadas para a divulgação de O Rei Leão, prefere ser econômica nas palavras quando questionada sobre o que significou, lá atrás, ser mulher na Broadway.
“Como mulher, vejo muitas coisas importantes acontecendo”, diz, demarcando terreno. “Mas as posições principais da indústria ainda são restritas para nós.”
Publicado na edição n° 1270 de CartaCapital, em 02 de agosto de 2023.
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