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Semente do mal

O extremismo de direita ameaça os valores europeus, mas há sinais de resistência

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Hola. Na Espanha, o Vox, herdeiro do franquismo, está perto de alcançar o poder central em aliança com o PP – Imagem: VOX Espanha
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Nigel Farage imagina ser um verdadeiro britânico, o homem que disse o que o ­establishment proibia e assim permitiu à Grã-Bretanha se livrar da nociva influência europeia. Na verdade, ele é um verdadeiro europeu, integrante de uma direita pan-europeia insurgente em rápido crescimento, a surfar nas mesmas ondas de constituição anti-imigrante, antiliberal e antidemocrática que outros políticos de sua laia em toda a União Europeia. Quase todos os países europeus agora têm um faragista a fazer o clima político, com uma diferença fundamental. Nenhum quer repetir a experiência desastrosa da Grã-Bretanha e deixar a UE. Sem querer, Farage prestou um grande serviço à causa europeia.

Enquanto o Vox da Espanha, com suas raízes no fascismo de Franco, espera sucesso nas eleições iminentes, ecoando o que Giorgia Meloni, com os Irmãos da Itália e suas raízes comparáveis no fascismo de Mussolini, alcançou no ano passado ao se tornar primeira-ministra, a política europeia dominante estremece. Os liberais e a esquerda recuam diante dos partidos que celebram a primazia da família e da fé, se opõem ao casamento entre pessoas do mesmo sexo, querem repressão à imigração e ao multiculturalismo, não acreditam nas mudanças climáticas, criticam todas as coisas ligadas à consciência social e, acima de tudo, acreditam que sua nação é mais especial do que qualquer outra. Partidos em quase todos os países da Europa repetem o refrão, sobem nas pesquisas e estão em governos nacionais ou regionais (Finlândia, Dinamarca, Áustria, Suécia, Polônia, Itália, Hungria) ou em breve poderão estar (Alemanha, França, Holanda, Espanha).

Mais ameaçadoramente, se eles pudessem levantar as restrições, seguiriam o exemplo do húngaro Viktor ­Orbán e reinventariam sua democracia para permitir que apenas seu partido governasse, eliminando um Judiciário independente e uma imprensa livre, tudo a serviço da causa da direita. Os poloneses Jarosław Kaczyński e Mateusz ­Morawiecki tentam copiar Orbán e levar a Polônia de volta às suas raízes católicas conservadoras. Seja qual for o ataque da direita populista às construções básicas de uma ordem democrática ou sua visão apaixonada de que eles e somente eles estão certos, entretanto, ninguém acrescenta deixar a UE ao seu programa.

Isto é reforçado pela guerra Rússia-Ucrânia. Tanto a nacionalista francesa Marine Le Pen, que conquistou mais de 40% dos votos presidenciais em 2022, quanto Meloni um dia ficaram felizes em bajular o déspota russo. Putin considera a homossexualidade um pecado, afirma venerar o cristianismo, adota a linha mais dura contra os muçulmanos e celebra o sangue e a santidade mística que constituem o Estado-nação russo. Mas sua invasão bárbara da Ucrânia o transformou de alma gêmea da direita em um leproso político. Quando o presidente da Ucrânia, Volodimir Zelensky, pede o apoio da Otan, não faz sentido político ou de segurança, mesmo para um político de extrema-direita da UE, recusá-la. Da mesma forma, a insistência da Ucrânia em querer ingressar na UE para reforçar a possível filiação à Otan, completando assim sua adesão formal ao Ocidente, sublinha, mesmo à direita, que a arquitetura do tratado da UE em que vivem tem de ser mantida. Orbán apenas leva adiante suas opiniões pró-Putin: ele pode precisar de energia russa, mas precisa mais do dinheiro da UE.

Putin e o Brexit tornaram-se as duas pedras duras que definem os limites das ambições políticas da direita populista. A boa notícia é que a UE vai conservar-se unida e Putin terá oposição, desde que o centro alemão consiga manter a linha contra a AfD, o insurgente de extrema-direita. Aqui, a poderosa constituição salvará tanto a Alemanha quanto a Europa das ambições neofascistas. Mas isso ainda deixa o continente como uma espécie de cercadinho, forte o suficiente para continuar, mas muito fraco para impedir que princípios e valores democráticos básicos sejam desrespeitados.

Os neofascistas não cogitam dissolver a União Europeia. E a verdade vai aparecer

Veja Meloni. Ela leu as runas e é pró-UE, pró-Otan e anti-Putin, posição pela qual é aplaudida, devido ao seu histórico. Mas isso apenas lhe dá cobertura política para proibir iniciativas de procurar barcos de imigrantes atingidos, consolidar símbolos da nacionalidade e da cultura italianas, atacar o casamento entre pessoas do mesmo sexo e demitir da emissora pública suspeitos de serem simpatizantes liberais. É o fascismo a engatinhar que prefigura mais. O manifesto de ­Meloni declarava que a Europa deveria ser uma confederação de “pátrias”.

A Grã-Bretanha teve seu espasmo de direita no Brexit, com suas raízes no descontentamento pela perda de controle, a negligência social, o apelo a velhas glórias e o desejo de mudança de sistema. Agora enfrentamos a demorada limpeza dos escombros econômicos e sociais. Nosso momento populista, Johnson a imitar Orbán ao desafiar a Suprema Corte em nome de nós, o povo, passou.

Mas a direção da política europeia continuará a nos afetar. A guinada da direita na Europa e um centro enfraquecido da UE significam que as escassas chances de conseguir um acordo comercial melhor em 2026 diminuíram. As pressões da imigração sobre os acertos e erros de limitar os requerentes de asilo, que forçaram o recente colapso do governo holandês, não vão retroceder.

Apesar de tudo isso, a política de ultradireita recuará. Em última análise, os cidadãos querem prosperidade, segurança e justiça, não uma política performática voltada para a regressão. A direita é fraca para administrar bem as economias capitalistas modernas ou para enfrentar a realidade de que o clima e o meio ambiente estão se degenerando diante de nossos olhos. A verdade vai aparecer. As liberdades pessoais duramente conquistadas não serão abandonadas: as mulheres de toda a Europa não abrirão mão do direito ao aborto, nem os gays ao direito de se casar. Odiar o outro eventualmente acaba. Serão encontradas maneiras de administrar a imigração com decência.

Aqui, a Grã-Bretanha, curiosamente, poderia emergir como uma espécie de modelo. Nem o neofascismo nem o conservadorismo social têm apelo generalizado. Nosso primeiro-ministro pode ser britânico asiático, mas poucos se importam: o que importa é o que ele faz. O trabalhismo de Starmer tem a oportunidade de uma geração: transformar a economia, enfrentar os grandes desafios de hoje, mantendo a nossa cultura liberal grande e aberta. O sucesso será uma derrota para a direita da Europa. A democracia e o capitalismo provaram que funcionam. Será o nosso bilhete para sermos readmitidos no seio daquele que ainda será um grande clube que sairá mais forte, se bem que batido. O que vivemos faz parte do processo: construir a Europa. Tome coragem. •


*Will Hutton é colunista do Observer.

Publicado na edição n° 1269 de CartaCapital, em 26 de julho de 2023.

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