Mundo
“Existir é resistir”
Raffoul Goust, músico brasileiro que vive na Palestina, relata o medo e as angústias de morar na região


Raffoul Goust, natural de São Bento do Sul, norte de Santa Catarina, deixou o Brasil para viver na Palestina. Filho de imigrantes alemães e portugueses, a única recordação de infância que o liga ao Oriente Médio é um velho quadro na sala da casa de sua tia-avó, casada com um sírio, da mesquita Al-Aqsa, em Jerusalém. Aos 39 anos, graduado, mestre e doutor em Antropologia pela Universidade Federal do Paraná, Goust cursa pós-doutorado na Universidade de São Paulo. Mora em Ramallah, cidade com pouco mais de 32 mil habitantes e sede do governo da Autoridade Nacional Palestina. Na prática, a cidade funciona como “capital de fato” ou “provisória”, enquanto a população sonha em governar Jerusalém.
Graduado em música, composição e regência, Goust trabalha como professor de violão em conservatórios. E divide seu tempo entre as aulas e os projetos sociais com crianças e adolescentes do campo de refugiados de Kalandia, nas cercanias de Jerusalém, e no vilarejo de Deir Al-Ghusun, fronteira entre Israel e a Cisjordânia. É a sua terceira passagem por terras palestinas desde 2014. Foi assim nas pesquisas de mestrado e doutorado e, agora, no pós-doutorado.
Goust está há quatro anos no país. “Meu interesse em vir para cá teve duas vertentes. A primeira, para tentar entender um pouco mais sua história, dilemas e contradições. A segunda foi a música local. O tema da minha dissertação de mestrado foi o uso político de práticas e produções musicais palestinas.” A tese do doutorado tratou da construção de uma “Palestina única em termos cartográficos e terminologias locais de espaço”.
O brasileiro confessa “certa parcimônia” em descrever o cotidiano apenas pelas lentes da “ocupação sionista”. Explica que o país não se resume à Cisjordânia e à Faixa de Gaza, mas alcança todo o espaço ocupado pelos israelenses desde 1948. “A Palestina tem vida, os moradores trabalham, se relacionam, se divertem, saem à noite para tomar cerveja.” Como qualquer nação, a Palestina tem suas contradições, diz. Diferenças de classe, privilégios. “Aqui existem vida, amizades e divergências como qualquer outro lugar do planeta.”
Não é possível desconsiderar, no entanto, a violenta ocupação israelense. “Seria fechar os olhos para uma realidade colonial cruel, absurda e gritante.” Desde a sua chegada, Goust perdeu a conta dos eventos violentos. Recorda a primeira vez que presenciou uma cena de guerra na cidade de Birzeit, em 2014, na semana em que desembarcou no país. Por volta das 6 horas da manhã acordou com o som de explosões, parecido com bombas de efeito moral. Imaginou tratar-se de um acidente na obra ao lado, mas logo viu soldados israelenses em marcha. A reação foi imediata. Um grupo de crianças saiu à rua para montar uma barricada com os lixos dos contêineres e pneus. Em pouco tempo, jovens, adultos e idosos lançavam pedras contra as tropas inimigas. O exército israelense procurava dois palestinos. Um deles, que estivera preso, foi solto sob a condição de “expor os companheiros políticos”. Ao sair, negou-se a cumprir o acordo e acabou morto.
“Viver aqui é, ao mesmo tempo, lindo e terrível”
Em outro episódio, o músico viveu seu próprio drama. Durante uma visita a um amigo na cidade de Kobar, ficou retido na cidade, proibido de regressar a Ramallah por conta de um bloqueio israelense. Novamente, os soldados caçavam um palestino. “Esses bloqueios acontecem sempre no fim da tarde ou ao amanhecer. Trata-se de uma prática comum, espécie de punição coletiva em determinada localidade.” Desta feita, a invasão aconteceu, porém, pouco depois da meia-noite. Prenderam a mãe do jovem procurado e demoliram a residência. “Deter familiares é uma tática para forçar o suposto culpado a se entregar.”
O pior estava por vir. Perto da residência onde Goust se encontrava, um grupo de moradores pôs fogo na retroescavadeira utilizada para demolir a casa. Os soldados acharam que a ação partira dos amigos do músico, invadiram o quintal, atiraram bombas de gás lacrimogêneo e deram tiros para o alto. “Foi uma noite de terror. Felizmente, por muita sorte, não invadiram a residência. Na manhã seguinte, o quintal tinha projéteis de balas e bombas de gás.”
O medo domina. Em Jenin, defronte o conservatório no qual o músico leciona, um tiroteio obrigou professores a proteger as crianças em uma sala no fundo. Uma delas, aluno de Goust, entrou em pânico. Nunca mais voltou às aulas. Na manhã seguinte, havia manchas de sangue na rua e nas calçadas. Nas paredes da escola, marcas de balas de fuzil. Em 4 de julho, na mesma Jenin, um batalhão de militares israelenses guiados por drones atacou o campo de refugiados. Casas foram demolidas, ruas destruídas, carros arrastados por tratores e o hospital municipal, atacado com bombas. O resultado foi a morte de 12 palestinos e um saldo de cem feridos. O bombardeio abriu caminho para a chegada de mil soldados do exército israelense. No escuro, por falta de eletricidade, e guiados apenas pela luz dos celulares, 14 mil palestinos que vivem em menos de 1 quilômetro quadrado tentavam sobreviver até a manhã seguinte. “As cenas de famílias fugindo, correndo de madrugada pelas ruas com apenas algumas mochilas, levando crianças, idosos, cadeirantes com as mãos para cima são estarrecedoras. O grau de crueldade das forças militares israelenses é absurdo, desumano e revoltante”, escreveu o antropólogo em suas redes sociais.
Apesar da violência, Goust não tem planos de deixar a região. “Viver aqui é, ao mesmo tempo, lindo e terrível”, afirma. Se, por um lado, as investidas coloniais israelenses buscam impedir a existência da Palestina como nação, por outro, os moradores resistem de todas as formas possíveis. “Desde que cheguei aqui, ouço os palestinos dizerem que ‘existir é resistir’.” •
Publicado na edição n° 1268 de CartaCapital, em 19 de julho de 2023.
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