Mundo
Esqueceram de mim
À exceção de Lula e de alguns líderes latinos, o mundo silencia diante da extradição de Julian Assange


A advogada Stella Assange gasta as últimas energias em uma batalha perdida. Na segunda-feira 10, a mulher de Julian Assange, fundador do Wikileaks, esteve em Genebra em mais um evento destinado a despertar a atenção global para o drama do marido – e por pouco não passou despercebida. Há cerca de um mês, a Justiça britânica negou o último recurso apresentado pela defesa do jornalista e a extradição para os Estados Unidos, que o acusa de conspiração e espionagem, tornou-se iminente. “O padrão é qualificar o jornalismo como espionagem e o público como inimigo. Se isso for mantido, então todos os jornalistas serão vistos como inimigos”, alertou. Na reunião, a ativista agradeceu ao presidente Lula por suas críticas à perseguição de Assange. Quando o brasileiro fala, afirmou, “o mundo ouve”.
Lula, de fato, tem sido uma rara voz de apoio ao australiano. O presidente tem feito questão de criticar a perseguição ao jornalista, seja nas redes sociais, seja em viagens pelo Brasil ou ao exterior. “Vejo com preocupação a possibilidade iminente de extradição. Assange fez um importante trabalho de denúncia de ações ilegítimas de um Estado contra outro”, publicou o petista em sua conta no Twitter. “A prisão vai contra a defesa da democracia e da liberdade de imprensa. É importante que todos nos mobilizemos em sua defesa.” As declarações de Lula levaram um grupo de ativistas dos direitos humanos a sugerir a concessão pelo Brasil de asilo a Assange, mas esta é, no momento, uma hipótese fora de cogitação.
O papa Francisco também se uniu à campanha pela libertação ao receber no Vaticano, no fim de junho, Stella, os filhos e os pais do jornalista. “Se Assange não tivesse denunciado crimes de guerra dos Estados Unidos, mas da China ou da Rússia, já teria um monumento para ele em Washington”, declarou ao jornal Brasil de Fato Rafael Corrêa, ex-presidente do Equador, outro raro líder político a defender em público o fundador do Wikileaks. Corrêa foi fundamental na proteção de Assange. Durante sete anos, por sua determinação, o jornalista viveu asilado na Embaixada do Equador em Londres. Nesse período, ele e a futura mulher, então chamada Stella Morris, advogada de origem sul-africana, iniciaram um romance. O casal tem dois filhos, Gabriel e Max, presenças constantes nas manifestações pela libertação do pai. Assange acabaria traído por Lenin Moreno, pupilo e sucessor de Corrêa na Presidência do Equador, que, em um típico gesto de oportunismo, afastou-se do mentor acusado de corrupção e rendeu-se aos encantos de Washington. Em 11 de abril de 2019, Moreno, no episódio que marcará para sempre seu mandato medíocre, expulsou o jornalista da embaixada. Policiais britânicos o esperavam na porta.
O destino do australiano, após quatro anos de disputa judicial, aparentemente foi selado em 9 de junho. Em um despacho de três páginas, Jonathan Swift, juiz do tribunal superior do Reino Unido, rejeitou os oitos pontos da apelação contra a ordem de extradição assinada um ano antes pelo então ministro do Interior, Priti Patel. Nos tribunais britânicos, as possibilidades de recursos se esgotaram. Resta à defesa buscar as cortes europeias de direitos humanos, embora sejam mínimas as chances de reversão do processo ou de uma decisão em tempo hábil. Enviar o jornalista de 52 anos para os EUA equivale à decretação da pena de morte. As sentenças, calculam os especialistas, de quase duas dezenas de acusações podem somar 175 anos. Washington cobiça o pescoço de Assange desde a revelação, em 2010, de documentos secretos e vídeos sobre a atuação das tropas norte-americanas no Iraque e no Afeganistão, arquivos vazados pelo analista de segurança Bradley Manning, que mais tarde assumiria a identidade de Chelsea. Manning chegou a ser condenada a 35 anos de prisão por traição, mas acabou libertada em 2017 por decisão do presidente Barack Obama.
O fundador do Wikileaks pode ser condenado nos EUA a 175 anos de prisão
Diretora de campanhas da ONG Repórteres Sem Fronteiras, Rebecca Vincent externou ao jornal britânico The Guardian as preocupações da entidade em relação aos efeitos do despacho de Swift. “É absurdo que um único juiz possa emitir uma decisão de três páginas que poderia colocar Julian Assange na prisão pelo resto de sua vida e impactar permanentemente o clima do jornalismo em todo o mundo”, lamentou. “O peso histórico do que acontece a seguir não pode ser exagerado. É hora de acabar com esse ataque implacável a Assange e agir para proteger o jornalismo e a liberdade de imprensa. Nosso apelo ao presidente Joe Biden agora é mais urgente do que nunca: retire essas acusações, encerre o caso e permita a sua libertação sem demora.”
Fundado em 2006 por Assange, hacker de origem, o Wikileaks mudou os parâmetros do jornalismo investigativo ao optar por expor ao público o material bruto coletado sem necessariamente depender da mediação de profissionais da imprensa. O modelo provocou debates acalorados a respeito da plataforma – trata-se ou não de um veículo jornalístico – e do papel dos jornalistas no mundo contemporâneo.
O modo arredio e misterioso e a compulsão (ou prudência) em viver escondido transformaram o australiano em uma personagem ao mesmo tempo endeusada e demonizada. Os documentos ultrassecretos que escancararam, sobretudo, os crimes de guerra cometidos pelos EUA no Oriente Médio colaram um alvo nas suas costas. Antes de ser acusado de espionagem por Washington, Assange enfrentou uma denúncia por estupro na Suécia. O processo acabaria arquivado – segundo o jornalista, tudo não passou de armação para colocar em xeque a credibilidade do Wikileaks. A despeito da pressão dos governos ocidentais, a plataforma viveu um período áureo no início da década passada e firmou parcerias com meios de comunicação tradicionais, entre eles New York Times, Der Spiegel, The Guardian e Le Monde. Sem o Wikileaks, o mundo nunca saberia que os norte-americanos espionavam seus aliados. Caído em desgraça, o australiano viu-se abandonado pelos parceiros dos tempos de glória. Não se leem editoriais a favor de sua libertação, tampouco campanhas abertas da mídia. A cobertura oscila entre um tom burocrático e o descaso quase absoluto. •
Publicado na edição n° 1268 de CartaCapital, em 19 de julho de 2023.
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