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Compasso de espera

As iniciativas e os projetos se multiplicam, mas o governo ainda carece de coordenação

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Complexidade. As montadoras vão escolher, entre inúmeras opções, a tecnologia mais adequada para os seus negócios. E o veto do Ministério de Minas e Energia trava a expansão dos painéis solares no Minha Casa, Minha Vida – Imagem: Toyota Brasil/99/Kinto e Daniel Castellano/Prefeitura de Curitiba
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A declaração do presidente Lula, na discussão sobre o acordo comercial União Europeia-Mercosul, de que a UE e demais países ricos não podem impor condições por não terem cumprido o Protocolo de ­Kyoto, as deliberações de Copenhague e as decisões do Rio e não cumprirão também o Acordo de Paris, apontam na direção correta da busca de maior equidade entre os blocos econômicos, mas não dispensam o Brasil de fazer a lição de casa na transição para o desenvolvimento econômico sustentável. Além de lutar para reverter o desmatamento na Amazônia, medida crucial, e nesse quesito o governo vai bem, com o Ministério do Meio Ambiente e outras pastas em intenso trabalho de recuperação da floresta, a equipe de Lula parece um tanto desarticulada em suas ações de implementação da transição sustentável, em que pese o dinamismo na tomada de decisões.

A desarticulação acontece, em grande medida, pela ausência do Comitê Interministerial da Mudança Climática, presidido pela Casa Civil e que tem na secretaria-executiva o Ministério do Meio Ambiente. Na quarta-feira 12, o ministério informou que a primeira reunião do comitê poderá ser realizada em agosto, após o encontro de governantes de países da Amazônia integrantes da Organização do Tratado de Cooperação Amazônica. No mesmo dia, a Casa Civil adiantou, no entanto, que a primeira assembleia ainda não está marcada. O desencontro imperante, previsível em um governo de frente política, dificulta pôr em prática soluções de óbvio bom senso, entre elas equipar as casas do programa Minha Casa, Minha Vida, do Ministério das Cidades, com painéis solares, iniciativa barrada pela pasta de Minas e Energia, que vocaliza a reação dos distribuidores de energia.

O desencontro imperante, previsível em um governo de frente política, dificulta sancionar soluções de óbvio bom senso

Outra lacuna é a inexistência de um plano nacional para a produção de hidrogênio verde, quando no resto do mundo há 359 projetos anunciados. Alguns levantamentos informam um total maior, próximo de mil projetos. O Brasil conta com apenas um deles, no Porto de Suape, em Pernambuco. Entra na conta dos desacertos o fato de que a Petrobras, maior empresa do Brasil, também está atrasada no processo, alertou o diretor de Transição Energética da companhia, Mauricio Tolmasquim. “Não há uma estratégia abrangente para a transição sustentável e, sem isso, não se sabe se as metas de descarbonização serão atingidas. Essa é uma impressão generalizada entre os envolvidos com o tema”, aponta Gustavo Luedemann, técnico do Ipea e coordenador de estudos em sustentabilidade ambiental. A primeira meta, para 2025, diz o pesquisador, poderá ser cumprida se a redução do desmatamento for realizada de maneira muito eficaz. Mas para alcançar a última, em 2050, de o País se tornar neutro em carbono, é necessário fazer desde já um grande esforço e há pouco de concreto. “O mercado está assanhado. Os agentes privados querem se apropriar das oportunidades de reduzir emissão muito rapidamente”, ressalta Luedemann.

O problema é que o País tem a sua própria obrigação de reduzir e essas reduções feitas pelos agentes privados não poderão ser contabilizadas em favor do Brasil. Como esses créditos vão ser vendidos, eles serão acrescidos nos países compradores dos créditos e não naqueles onde a redução de emissão ocorreu. “Por isso é muito urgente que o comitê interministerial se reúna e trabalhe rapidamente na elaboração da chamada Contribuição Nacionalmente Determinada (iNDC, na sigla em inglês), documento do governo brasileiro que registra os principais compromissos e contribuições do País para o acordo climático de Paris, para reduzir suas emissões e atingir as metas. A razão da pressa é que hoje só o excedente poderia ser utilizado e quanto mais tempo demorar a definição, mais o mercado vai buscar maneiras de fechar contratos. “E depois do leite derramado, eles entrarão na Justiça para validar o que fizeram”, destaca o técnico do Ipea. “A iNDC exige muita pressa. Não se sabe nem se o dinheiro fica no Brasil. É muito importante definir uma estratégia para puxar uma cerca, pegar para si uma parte do abatimento das emissões.”

O mercado envolve muito dinheiro e é preciso ter um controle muito grande dos acontecimentos. Não basta que os agentes tenham essas informações. A experiência da Europa mostra que eles sempre tendem a mentir, para menos, quando repassam as informações sobre emissões ao governo. Mesmo quando detêm permissões suficientes para as suas emissões, existe interesse em vendê-las. Uma das opções recomendadas em um estudo seria colocar o Ibama, que tem poder de polícia, para averiguar essas informações e tomar as medidas cabíveis no caso de tentativa de fraude. “O ponto de partida na discussão da transição sustentável, do nosso ponto de vista, é que a nova lei de licitações, 14.133, que contém o conceito de compra sustentável, diz ser preciso orientar o processo de contratação para uma forma sustentável e essa sustentabilidade precisa ser ambiental, econômica e social”, destaca Roberto Pojo, secretário de gestão e inovação do Ministério da Gestão e Inovação em Serviços Públicos. O novo dispositivo substituirá a Lei 8.866, em vigor até dezembro. Até o momento, houve poucas compras governamentais realizadas com base na nova lei.

Atraso. O Brasil só tem um projeto de hidrogênio verde, embora reúna as condições de liderar o mercado internacional – Imagem: Neoenergia e iStockphoto

Em relação à sustentabilidade ambiental, afirma Pojo, há estimativa de que as compras públicas representem de 12% a 15% do PIB, considerados todos os entes federativos e todos os poderes. É notória, portanto, a capacidade de indução por meio das contratações para o suprimento do Estado. Um segundo elemento, que reforça a capacidade de indução das compras públicas é que a lei também balizou o conceito de ciclo de vida do produto. “Isso quer dizer que quando vou fazer a contratação, não olho mais única e somente para a questão do preço ofertado pelo fornecedor. Devo considerar outros elementos para avaliação do processo de contratação, como o custo de manutenção, o consumo, o tipo de descarte, o processo produtivo. Claro que isso não acontece de uma hora para outra, teremos que construir os modelos que vão servir de base para o processo”, detalha o secretário.

Há um plano para a estratégia nacional de logística pública, em fase de pré-projeto. A ideia é elaborá-lo de forma compartilhada e cooperativa com estados e municípios de modo que se consiga verificar a sustentabilidade de todas as contratações por meio do exame do seu ciclo completo. “Em paralelo, tratamos com o MDIC de um projeto piloto, em parceria com a agência alemã GIZ, para construir modelos e parâmetros que permitam comparar a sustentabilidade de diferentes opções do mesmo produto. É um estudo complexo, que estudará as variáveis a serem analisadas e que peso cada uma delas deve ter”, sublinha Pojo. Existe a possibilidade de o trabalho se refletir em uma certificação, que facilitaria o procedimento.

A nova lei de licitações trouxe o conceito de ciclo de vida do produto

Um fator que incidirá no processo de compras sustentável é a discussão de transição energética. “Ainda não temos esse balizador. É preciso definir qual a matriz de destino, pois a transição pressupõe abrir mão da matriz de carbono e ir para outra, com baixa emissão de carbono. Qual será o mix estabelecido de fontes não emissoras? Esse é um ponto fundamental da definição”, detalha o secretário. O segundo ponto a se definir é em quanto tempo o País pretende fazer a transição. O terceiro aspecto é quem vai financiar o processo, se o consumidor, seja ele residencial, industrial ou comercial, e que parte caberá ao Estado, por meio de impostos. “Uma vantagem é obter as tecnologias mais maduras, mais baratas. É só ver o que aconteceu com a célula fotovoltaica, que com o tempo ganhou capacidade maior e um preço menor, de certo modo se popularizou, mas no início era uma opção muito cara”, ressalta.

A herança do bolsonarismo para a transição sustentável é uma máquina estatal desmontada com requintes de violência e perseguições, praticadas com força total no Ministério do Meio Ambiente. No caso da Gestão e da Inovação em Serviços Públicos, a parte do Ministério da Economia remanescente veio estruturada, não houve ­necessidade de uma grande transformação. Quanto às iniciativas específicas para a transição sustentável, destaca-se, pela abrangência e efeitos multiplicadores, o segundo ciclo do programa Rota 2030, do Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio, a ser anunciado no próximo mês. “Nesta etapa, abriremos a possibilidade de se explorar todas as rotas tecnológicas que promovem o processo de descarbonização, principalmente analisando a eficiência energética do poço à roda (que reflete as emissões de gás carbônico de veículos movidos por qualquer fonte energética), muito importante para a avaliação do nível de descarbonização de todas as tecnologias para mobilidade e logística”, ressalta Uallace Moreira, secretário de Desenvolvimento Industrial, Inovação, Comércio e Serviços do MDIC.

Ultrapassada. Enquanto insiste em furar poços na foz do Rio Amazonas, a Petrobras engatinha na transição – Imagem: Lula Marques/ABR

O Rota 2030, diz Moreira, não privilegia nem ignora rotas tecnológicas. O projeto leva em conta que o Brasil domina uma tecnologia que emite o mesmo nível de dióxido de carbono do carro elétrico e está numa posição muito mais favorável para a transição energética do que o resto do mundo. “O biodiesel, o bioconsumo, isso vai ser estimulado. Para alguns especialistas, quando se adota o critério do posto à roda, o etanol tem mais vantagem do que o elétrico. O bagaço se consome na alimentação animal. É muito mais sustentável o etanol do que a produção de bateria”, sublinha o secretário do MDIC. O objetivo do governo é, contudo, estabelecer os critérios e permitir a cada empresa adotar a sua própria estratégia de combustível do futuro. Esta decisão deverá seguir as diretrizes do chamado projeto de lei do combustível do futuro, que visa regulamentar a integração das políticas de descarbonização e abre a possibilidade de exploração do diesel verde e do biocombustível. O programa dará incentivos fiscais para aumentar os investimentos em energia limpa, garantir segurança jurídica para o setor e determinar metas para o processo de descarbonização brasileiro. “Acredito que cada montadora terá a sua plataforma tecnológica. O nosso objetivo é a descarbonização. Cabe às empresas avaliar qual a melhor estratégia dentro da sua estrutura produtiva, da sua planta. Se a Toyota, por exemplo, avalia que a melhor rota tecnológica é o carro híbrido, é uma decisão dela, a gente não interfere. Vale o mesmo caso a GM dê preferência, por hipótese, ao carro elétrico. O que a gente vai exigir do setor é a descarbonização”.

O Brasil tem inúmeras opções para reduzir a emissão de carbono

O Brasil, reforça Moreira, desfruta da rara condição de poder optar por várias rotas tecnológicas, todas elas viáveis. O País tem, por exemplo, reservas estratégicas de minerais críticos. Conta com a sexta maior reserva de lítio do mundo. “Na minha opinião, é inconcebível que nos tornemos exportadores de lítio bruto, sem processar. Um projeto de neoindustrialização tem que ter clareza de que existe uma rota tecnológica que é a do carro elétrico e o País tem matéria-prima para produzir a bateria. Precisamos fortalecer essa cadeia produtiva”, defende Moreira. Não podemos, acrescenta, deixar acontecer o que aconteceu com o café. O Brasil é o maior produtor e exportador de café, mas só exportamos café bruto, não comercializamos no exterior o produto processado. “Somos o segundo maior mercado consumidor de café do mundo. Precisamos pensar em caminhos e estratégias de adensamento de cadeias produtivas para adicionar valor a essas riquezas naturais.”

Um processo de transição energética, complementa o secretário, não se limita, na área industrial, apenas a um programa para o setor automotivo. Há outros mecanismos como o novo Padis, o programa de desenvolvimento de semicondutores, agora acrescido do setor de fotovoltaica, com incentivos para energia solar. “A nossa matriz é 80% limpa. Pode ficar mais limpa ainda com desenvolvimento de cadeias produtivas aqui no Brasil.” •

Publicado na edição n° 1268 de CartaCapital, em 19 de julho de 2023.

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