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A batalha mal começou

A expressiva queda no desmatamento da Amazônia é ofuscada pela crescente degradação do Cerrado

A batalha mal começou
A batalha mal começou
Mercado. Com o aumento da demanda mundial por commodities agrícolas, as plantações de soja avançam sobre o bioma – Imagem: Cláudio Neves/Portos do Paraná/GOVPR e Nelson Almeida/AFP
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O característico céu sem nuvens sobre a maior parte da Amazônia e do Cerrado no mês de junho deixou nítido o sucesso dos esforços empreendidos pelo governo Lula no combate ao desmatamento, mas também revelou o quanto ainda resta a fazer para que o Brasil proteja, de fato, o que resta dos seus biomas e cumpra o compromisso de desmatamento zero assumido internacionalmente. Divulgados pelo Ministério do Meio Ambiente (MMA), os dados obtidos a partir de imagens de satélites do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais registraram uma redução de 33,6% no desmatamento da Amazônia no primeiro semestre de 2023, em comparação ao mesmo período do ano passado, mas também um aumento de 21% da devastação do Cerrado, a confirmar a preocupante tendência de “ataque legalizado” ao segundo maior bioma brasileiro, agravada durante o governo Bolsonaro. Juntos, Amazônia (58%) e Cerrado (32%) responderam, em 2022, pela quase totalidade do desmatamento registrado no País.

Coletadas em tempo real pelo sistema de vigilância Deter, as imagens de satélite mostraram também queda de 41% no desmatamento da Amazônia em junho, fato muito comemorado pelo governo, pois o mês marca o início da estação seca no Norte do Brasil e costuma apresentar índices altos de derrubada florestal. Desta vez, a boa notícia estendeu-se ao Cerrado, onde também foi registrada uma significativa diminuição (14,6%) da perda de cobertura vegetal: “A queda no desmatamento na Amazônia tem correlação direta com uma mudança de postura do governo federal e com as ações concretas que foram desenvolvidas ao longo deste semestre”, afirma André Lima, secretário de Controle do Desmatamento e Ordenamento Ambiental Territorial do MMA. Essa mudança, acrescenta, incluiu o combate à impunidade, o aumento das ações de fiscalização e a utilização de ferramentas como o embargo remoto, que usa Tecnologia da Informação para identificar infrações e crimes ambientais.

No primeiro semestre, a devastação da savana brasileira cresceu 21%, sobretudo por causa do “ataque legalizado”

Existe otimismo na área ambiental do governo, mas este é moderado: “Na Amazônia, temos claramente demonstrada uma tendência de queda. O esforço de reverter a curva foi atingido, mas ainda não sabemos se vamos conseguir uma redução no segundo semestre que compense a herança do ano anterior”, pondera o secretário-executivo do MMA, João Paulo Capobianco. A ministra Marina Silva, por sua vez, ressalta as diferenças com o governo anterior, que em 2019 e 2021 gastou, sob a batuta do vice-presidente Hamilton Mourão, 550 milhões de reais em operações de Garantia da Lei e da Ordem (GLO) com resultado zero no enfrentamento ao desmatamento. “Isso é mais dinheiro do que nós conseguimos na PEC da Transição. Mesmo gastando tudo isso, o desmatamento subia de forma desenfreada. Nestes seis meses, o Ibama fez uma execução orçamentária de 342 milhões de reais e já alcançamos uma tendência de queda consistente do desmatamento.”

Um fator determinante para o bom resultado divulgado pelo governo é o resgate do Ibama, que na gestão anterior deixou de cumprir suas funções constitucionais. No primeiro semestre, o órgão registrou aumento significativo em suas principais ações de comando e controle, como aplicação de multas (167%), autos de infração (166%) e embargos de áreas desmatadas (111%), em comparação com a média dos quatro anos de Bolsonaro. O governo Lula espera que a redução da velocidade da derrubada da floresta seja ainda maior quando se fizerem sentir os efeitos do também redivivo Plano de Prevenção e Controle do Desmatamento na Amazônia (PPDCAm), relançado oficialmente em 5 de junho. O otimismo é compartilhado com as entidades ambientalistas: “Cada alerta de desmatamento é um pedido de socorro da floresta. Esses pedidos foram ignorados por quatro anos. Há três meses, temos quedas consecutivas dos alertas. Aos poucos, o governo está retomando a fiscalização e a governança na Amazônia. Há operações em terras indígenas, aplicação de multas e embargos e combate ao garimpo ilegal, entre outras medidas”, diz Márcio Astrini, secretário-executivo do Observatório do Clima.

Compromisso. Lula e Marina Silva terão de suar a camisa para cumprir a promessa de zerar o desmatamento no País – Imagem: Vinícius Mendonça/Ibama e Joedson Alves/ABR

O tom da conversa azeda, porém, quando se fala da questão específica do Cerrado, onde os nós legais, políticos e administrativos são mais difíceis de ­desatar do que na Amazônia. No ­Cerrado, a lei permite um desmate de até 80% da vegetação nativa dentro dos imóveis rurais, desde que feito sob a supervisão dos governos estaduais ou municipais. O problema é que estes muitas vezes sofrem influência ou são diretamente controlados por grandes produtores rurais: “A visão da maioria do agronegócio sobre o Cerrado é que ele não tem importância alguma. A regra geral é o desmatamento para a monocultura, principalmente da soja. Há muitos incentivos e negligência de governos estaduais na proteção desse bioma, como mostra, por exemplo, o aumento do desmatamento na região do Matopiba”, diz o ambientalista Pedro Ivo Batista, referindo-se ao arco de desmatamento que compreende trechos dos territórios de Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia.

Integrante da Coordenação Nacional do Fórum de ONGs pelo Meio Ambiente (FBOMS) e integrante do Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama), Pedro Ivo alerta sobre a importância do bioma: “Além de conter fauna e flora riquíssimas, o Cerrado é a caixa d’água do Brasil. Sua destruição impactaria diretamente o regime hidrológico do País, com repercussões negativas para outros biomas, como o amazônico. Se o Cerrado for destruído, vai faltar água para a indústria, para as cidades e para as pessoas e animais. Todos perdem”. Ele defende a aprovação dos diversos projetos de lei que protegem o Cerrado em tramitação no Congresso Nacional, o principal há 13 anos: “É preciso lançar urgente o Plano de Combate ao Desmatamento do Cerrado (PPCerrado) anunciado pelo MMA. É fundamental apoiar o desenvolvimento sustentável no bioma e fortalecer as comunidades tradicionais numa perspectiva socioambiental”.

As GLOs de Mourão torraram 550 milhões de reais e tiveram impacto zero na Amazônia. Com 342 milhões, o Ibama reduziu a devastação em 33% no semestre

Ex-presidente do Ibama e especialista em políticas públicas do Observatório do Clima, Suely Araújo aponta a conivência dos governos, sobretudo na região do Matopiba, como um grave problema a ser enfrentado. “Os desmatamentos são muitas vezes autorizados pelos órgãos estaduais do meio ambiente, os quais deveriam impor mais exigências para a supressão de vegetação nativa, tendo em vista a conversão para uso agropecuário”, diz. Ela também pede urgência ao governo no lançamento do plano de controle do desmatamento do Cerrado: “É preciso chamar os governos estaduais para assumirem suas responsabilidades neste quadro de aceleração da degradação ambiental. Há necessidade de reforço no comando e controle do bioma, mas também de atuação em prol de um modelo econômico que assuma a proteção ambiental como parâmetro importante. A desatenção nessa perspectiva gera prejuízos para o próprio agronegócio”.

Para André Lima, o primeiro passo do governo para reverter a tendência de destruição do Cerrado é dialogar com os estados: “Temos de compreender bem os fatores que estão determinando esse desmatamento. No primeiro semestre, mais de 77% da devastação aconteceu dentro de áreas e imóveis rurais inscritos no Cadastro Ambiental Rural (CAR) e 81% ocorreu no Matopiba, sendo mais de 40% no oeste da Bahia. Estamos agora identificando e entendendo esse desmatamento e buscando trabalhar juntamente com os poderes locais, porque a maior parte é autorizada e essas autorizações são dadas pelos estados ou pelos municípios delegados pelos estados dentro do que a legislação permite”.

As primeiras ações do governo, adianta o secretário, serão suspender novas autorizações para supressão de vegetação pelos municípios, controlar significativamente as licenças dadas pelos estados e rever as regras de emissão do aval ao desmate: “É preciso colocar ordem, um padrão mínimo para que haja de fato controle sobre essas autorizações. Vamos aumentar a fiscalização e as ações do Ibama em parceria com os estados em relação ao desmatamento ilegal. No caso dos desmatamentos autorizados, precisamos ainda entender como cada estado está funcionando para podermos rever as normas e estabelecer uma regra federal que as padronize”.

Capobianco. Agora, o maior desafio é compensar a herança do ano anterior, observa o secretário-executivo do MMA – Imagem: Fernando Donasci/MMA

Para o presidente do Ibama, Rodrigo Agostinho, é preciso criar estratégias específicas para o Cerrado, “reconhecendo esse grande desafio de conciliar a produção agropecuária com a conservação”. Ele observa que acontece no bioma um fenômeno semelhante ao ocorrido na Mata Atlântica: “As áreas planas, onde a mecanização pode acontecer, estão sendo eliminadas, restando as áreas de morros ou campos rupestres. Tirando as principais serras do Cerrado (Canastra, Cipó, Pireneus e Espinhaço) e as chapadas (Veadeiros, Guimarães e Diamantina), o que estamos vendo é uma paisagem entrecortada com matas de galeria e cultivos agrícolas”. Agostinho faz uma defesa veemente do bioma, que define como um dos mais ameaçados do mundo: “Já perdemos pelo menos metade de sua área original de 2 milhões de quilômetros quadrados. Com mais de 11,6 mil espécies vegetais, o Cerrado é a savana mais rica em biodiversidade do mundo, são 194 mamíferos, quase 900 aves, mais de 150 anfíbios. É uma biodiversidade muito rica para a gente assistir em tempo real sua destruição”.

O Ibama foi anfitrião, na terça-feira 11, do primeiro Seminário Técnico-Científico de Análise de Dados do Desmatamento e das Queimadas no Cerrado, evento que reuniu autoridades do governo, empresários e representantes da sociedade civil. Na abertura do seminário, Marina Silva afirmou que já foram feitas três reuniões de um grupo de trabalho formado pelo MMA e a Associação Brasileira de Entidades Estaduais de Meio Ambiente (Abema), para articular o enfrentamento ao desmatamento. “A integração das informações de desmatamento é fundamental para que o governo possa ter uma ação mais precisa e para discutirmos algumas medidas de regulamentação para fazer esse enfrentamento”, disse a ministra, que comemorou a “pequena sinalização” dada pela redução registrada em junho: “Isso nos anima para conseguir implementar essas medidas”.

Em 2022, cresceu o desmatamento em cinco dos seis biomas brasileiros

Marina alerta que a agenda ambiental exige “altíssimo investimento” e cobrou o alinhamento dos produtores do Cerrado: “Já há uma tendência de ­queda do desmatamento na Amazônia, mas o agronegócio está crescendo lá. O crescimento econômico e o combate às ilegalidades não são incompatíveis. Precisamos fazer pactos com os governos estaduais e municipais e com os produtores, sejam do agronegócio ou da agricultura familiar”. A ministra disse também que, para alcançar o desmatamento zero, “todos os eixos têm de caminhar com o mesmo empenho e intensidade, ainda que os resultados não venham na mesma velocidade”. A verdadeira mudança está apenas começando: “As ações de comando e controle, obviamente, vêm na frente e já estão sendo feitas. Mas é o apoio às atividades produtivas sustentáveis que vai fazer a diferença. Vamos pensar planos de desenvolvimento sustentável para cada bioma”.

Lançado em junho, o Relatório ­Anual de Desmatamento 2022 do ­MapBiomas, que consolida dados de todo o território nacional, mostra que houve aumento do desmatamento em cinco dos seis biomas brasileiros, com exceção da Mata Atlântica. O maior aumento aconteceu no Cerrado (31,2%), seguido por ­Pampa (27,2%), Caatinga (22,2%), Amazônia (19%) e Pantanal (4,4%). Após o lançamento do PPCerrado, o MMA pretende criar programas para os outros biomas. “Não está fácil cuidar da Amazônia, do Cerrado e dos outros biomas com a estrutura que a gente tem, mas acredito que estamos no caminho certo”, diz ­Rodrigo Agostinho. •

Publicado na edição n° 1268 de CartaCapital, em 19 de julho de 2023.

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