Economia
Engenheiros do caos
O Brasil corre o risco de “reformar” o sistema tributário sem alcançar ricos e sonegadores


O presidente da Câmara, Arthur Lira, prometeu discutir e votar a primeira etapa da reforma tributária antes do recesso parlamentar. Até o fechamento desta edição, na manhã da quinta-feira 6, não estava claro se os deputados analisariam a proposta no mesmo dia ou se, por força do intenso lobby, o assunto ficaria para a semana seguinte. Na véspera, o relator, Aguinaldo Ribeiro, disse ter encontrado a solução para as últimas reivindicações dos governadores em relação ao Conselho Federativo e ao Fundo de Desenvolvimento Regional, ao cálculo da transição para o Imposto sobre Bens e Serviços (IBS), que unificará o Imposto sobre a Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) e o Imposto sobre Serviços (ISS), segundo o substitutivo apresentado.
Trata-se de uma primeira etapa, que deverá ser seguida da reforma da tributação sobre a renda e o patrimônio. Ao ser votada em separado, essa segunda parte perderá, entretanto, força política e muitos temem um desfecho pífio, como inúmeras vezes ocorreu no País em decisões que buscam aumentar a taxação dos mais ricos para ao menos atenuar as condições de vida infernais dos mais pobres. Nesse caso, se arremessaria, mais uma vez, na lata do lixo as pretensões de centrais sindicais, movimentos populares, da própria campanha de Lula e do núcleo da base partidária do atual governo, que, ainda na condição de oposição, elaborou em 2019 o projeto Reforma Tributária Solidária, Justa e Sustentável, consolidado em uma emenda substitutiva à PEC 45, base da atual reforma. Isso tudo bem antes da ampla coalizão formada para derrotar Jair Bolsonaro e da tentativa de golpe do 8 de janeiro.
Na primeira etapa, a reforma trará alguns benefícios aos mais pobres, mas sem resolver a desigualdade
Elaborada para substituir um sistema tributário que, de tão confuso e irracional, é chamado de caos tributário pelo ministro da Fazenda, Fernando Haddad, a reforma proposta pelo Legislativo e abraçada pelo Executivo conta com o apoio de inúmeros setores econômicos e tem papel central na mudança do clima dos mercados para um ambiente mais positivo em relação ao governo Lula, confirmado por vários indicadores, entre eles a queda dos juros de longo prazo e da inflação, a oscilação da cotação do dólar em um patamar mais razoável do que no governo passado e a melhora da classificação de risco-país pela agência Standard&Poors. Entre os apoios mais recentes figuram aqueles dos presidentes dos bancos Itaú e Bradesco, que a consideram uma “oportunidade única”, e o de um grupo de economistas de A a Z no espectro político, de Affonso Celso Pastore e Samuel Lisbôa a Guido Mantega e Laura Carvalho.
A abundância de situações de irracionalidade na área tributária dá razão a quem vê na reforma se não uma solução completa, ao menos um significativo esforço de racionalização, com a extirpação de não poucas redundâncias, superposições e mesmo aberrações. Dois exemplos, entre centenas, dão uma ideia da balbúrdia reinante. Sob as regras tributárias atuais, a energia elétrica, se for usada na fábrica, dá direito a crédito de ICMS, mas quando utilizada no escritório da mesma empresa, não gera crédito algum. Um software, se padronizado, é considerado produto e paga ICMS, mas quando produzido sob encomenda para uma empresa é um serviço e paga ISS.
Entre os problemas do sistema tributário atual destacam-se a base fragmentada e sem lógica, com um imposto para mercadorias e outro para serviços, quando, na prática, é cada vez mais difícil distinguir um do outro. A cumulatividade, ou impostos em cascata, é outro problema grave, pois gera o pagamento de impostos sem recuperação por meio de créditos e onera os investimentos e a produção, deixando o produto nacional em desvantagem em relação ao produto importado, tanto no mercado interno quanto no exterior. A complexidade é outra característica. Desde 1988, foram editadas mais de 460 mil normas tributárias, o equivalente a 37 por dia. O ICMS tem 27 legislações estaduais, cada uma com enorme quantidade de alíquotas e regimes especiais. O ISS tem mais de 5,5 mil leis, uma para cada município. O PIS e a Cofins contemplam mais de cem hipóteses de alíquota zero, além de 20 regimes especiais. Esse emaranhado significa custo burocrático altíssimo para o pagamento dos impostos no Brasil e provoca inúmeras distorções na economia. Uma dessas deformações é a concessão de benefícios fiscais que provocam viagens desnecessárias de mercadorias, que saem de um estado, vão a outro e voltam àquele de onde saíram, com aumento do custo logístico e impacto negativo no meio ambiente. No sistema atual, calcula o Ministério da Fazenda, uma grande empresa consome 34 mil horas por ano para apurar e pagar impostos no Brasil e uma de médio porte despende 1,5 mil horas por ano. Com as mudanças em análise no Congresso, espera-se um aumento da competitividade das empresas atuantes no Brasil, inclusive em relação aos seus concorrentes externos.
O sistema castiga quem produz e os consumidores pobres. Ribeiro, relator da proposta, faz os últimos ajustes para contemplar estados e municípios – Imagem: WEG Brasil, Laycer Tomaz/Progressistas 11 e Geraldo Bubniak/AEN/GOVPR
Uma peça central do projeto original da reforma é a substituição do PIS/Cofins, ICMS, ISS e IPI por um Imposto de Valor Adicionado, o IVA, usado em 170 países e recomendado pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) e pelo Banco Mundial. O Ministério da Fazenda promete fazer essa substituição por meio de uma legislação uniforme o mais simples e homogênea possível. Além disso, quer instituir um imposto seletivo, o IS, sem finalidade arrecadatória, destinado a desestimular o consumo de produtos prejudiciais à saúde e ao meio ambiente. A equipe de Haddad projeta um crescimento adicional do PIB, a partir da reforma, de ao menos 12% em 15 anos, o equivalente a 1,2 trilhão de reais a mais, com a geração de 12 milhões de empregos no período. Um estudo prevê um acréscimo de renda que equivaleria hoje a 470 reais por mês na renda de cada habitante, caso a reforma tivesse ocorrido há 15 anos e aumentos dos PIBs setoriais de 11% para o agronegócio, 10% para os serviços e 17% no caso da indústria.
Ao contrário do que muitos pensam, a reforma tributária do consumo trará alguns benefícios para as classes mais pobres, mas está longe de resolver o problema mais grave da desigualdade tributária. “Ela não altera de forma significativa a questão das desigualdades. Do ponto de vista redistributivo, tem, entretanto, dois aspectos positivos”, destaca o economista Eduardo Fagnani, do Instituto de Economia da Unicamp. O primeiro é uma distribuição regional. Quando você faz com que o imposto seja cobrado no destino, vai aumentar a arrecadação dos estados que não são produtores. Segundo estudos, esses estados e municípios vão ganhar mais. Hoje, quem produz mais são os estados de São Paulo, Rio de Janeiro, Santa Catarina e Minas Gerais, que terão alguma perda, mas não significativa. Por outro lado, os estados pobres, inclusive aqueles do Nordeste, vão ter um ganho de receita. Haverá uma redistribuição regional.
O segundo ponto positivo é o cashback que, em tese, devolveria o imposto pago pela população pobre, possivelmente identificada como aqueles que fazem parte do cadastro único, o CadÚnico. Neste caso, diz Fagnani, haveria algum tipo de redistribuição. Existem algumas experiências positivas em alguns países, mesmo na América Latina, mas o problema é que o Brasil é um país muito heterogêneo. Não há o mesmo nível de formalização de compras no Pará e em São Paulo ou Rio Grande do Sul. “Aí fica difícil, porque grande parte das compras feitas pela população pobre ocorre na feira, no pequeno comércio, que em geral não são formalizados nem informatizados. Mas se eles conseguirem encontrar um mecanismo eficaz de fazer o cashback, isso teria algum impacto redistributivo.” O problema é que esse impacto redistributivo é muito pequeno, diz o economista. Alguns estudos de 2020 apontam que dos 10% mais pobres, a carga tributária retira 28% da renda. Segundo a proposta, isso cairia para 26%. “A questão distributiva, entretanto, a reforma atual não enfrenta. O secretário da Reforma Tributária, Bernard Appy, afirma que a carga tributária vai ficar igual. Hoje o consumo representa 50% do total da carga tributária, e vai continuar sendo 50%. O grande problema da regressividade tributária no Brasil é o peso elevado, na comparação internacional, do consumo na carga tributária. Isso não muda”, dispara o economista da Unicamp.
O Ministério da Fazenda projeta crescimento adicional do PIB de ao menos 12% em 15 anos
Apesar de o objetivo original não ser a redução da regressividade, esta se tornou um objetivo complementar e materializado em duas medidas: a devolução do imposto para baixa renda e a maior uniformização de carga tributária, especialmente a eliminação do diferencial de tributação entre bens e serviços, sublinha o economista Sergio Gobetti, pesquisador do IPEA e ex-secretário adjunto de Política Fiscal e Tributária da Secretaria de Política Econômica do Ministério da Fazenda. O fato de os serviços, diz Gobetti, serem em geral menos tributados do que as mercadorias, como ocorre no Brasil, favorece as famílias mais ricas, que consomem muito mais serviços do que os pobres. Só a unificação do ISS com ICMS, como previsto na reforma, possibilita corrigir esse problema, reduzindo a regressividade.
Além disso, prossegue o economista, a reforma avança com a devolução de imposto para famílias mais pobres, o cashback. “Esse tipo de medida é muito mais eficaz para reduzir a regressividade do que a desoneração da cesta básica, por exemplo. Isso porque, embora os pobres consumam proporcionalmente mais em alimentos do que os mais ricos, em termos absolutos os mais ricos, acima de 25 salários mínimos de renda, consomem quatro vezes mais do que os mais pobres, considerados aqueles com renda até dois salários mínimos, segundo os dados da POF do IBGE.
Pouco antes do anúncio da data de início de votação da reforma tributária do consumo na Câmara, as centrais sindicais divulgaram um manifesto com o pedido de uma reforma em sintonia com a pauta da classe trabalhadora, a mesma entregue a Lula durante a campanha eleitoral e que propõe a orientação da reforma segundo a capacidade contributiva de cada um. Reivindicam a progressividade, a revisão dos impostos de consumo e dos tributos sobre renda e patrimônio, o aumento das alíquotas sobre grandes heranças e riquezas, lucros e dividendos. Discussões mantidas na Fundação Perseu Abramo, de setembro a dezembro, com a participação de economistas da Abrasca, Fiesp, Dieese e de universidades, auditores fiscais, assessores parlamentares e pesquisadores, e que contou com a presença, em ao menos uma ocasião, de Bernard Appy, buscaram pontos de consenso em torno da etapa seguinte da reforma, a da tributação da renda.
A Zona Franca de Manaus será poupada e manterá os benefícios fiscais. Mas a ideia de uma reforma justa e solidária continua distante – Imagem: Tomas Silva/ABR e Ministério da Economia/Suframa
Segundo um dos participantes desses encontros, o economista e pesquisador do Ipea Pedro Humberto Carvalho, o principal consenso formado naquelas discussões quanto a reforma da tributação da renda pessoa física é a volta do imposto sobre lucros e dividendos, pois a isenção é a principal causa da regressividade no topo, isto é, a partir do 1% de contribuintes mais rico, com renda mensal superior a 60 mil reais. Além disso, a isenção causa um planejamento tributário enviesado para a distribuição de lucros e dividendos, alimentando a “pejotização” dos profissionais liberais.
A tributação sobre lucros e dividendos é, no entanto, um tema polêmico, sublinha Carvalho. Em 2021, Arthur Lira havia concordado com uma alíquota de 20%, mas isentando as empresas do Simples. Como o limite do Simples é de 400 mil reais mensais, na prática a volta da tributação seria inócua. “Acredito que há espaço para negociar uma alíquota reduzida da tributação dos dividendos para empresas do Simples, de 12,5% ou 15%, por exemplo, ou reduzir o limite de isenção para 48 mil reais anuais, equivalentes a 4 mil reais mensais, tributando o que exceder este valor”, ressalta Carvalho.
Há outras medidas em estudo ou de aplicação recente, acrescenta o pesquisador, como a Medida Provisória 1171, deste ano, que introduz o imposto anual dos rendimentos dos trustes, offshores e fundos pessoais, que está em estudo. Esses fundos só sofrem tributação no resgate, causando a postergação do pagamento por anos. Tais medidas não impedem, porém, a alimentação desses fundos com rendimentos isentos derivados de lucros e dividendos.
Outro ponto é a combinação do IRPJ e do IRPF. “Quem é contra a tributação dos lucros e dividendos argumenta que a nossa alíquota combinada do IRPJ mais CSSL, de 34%, é muito elevada e compensaria a atual isenção para dividendos. Em países da OCDE, a tributação máxima conjunta do lucro empresarial (IRPJ) e dos dividendos supera, porém, 40% na grande maioria dos países. Somente Estônia e Letônia isentam os lucros e dividendos”, destaca Carvalho.
O Ministério da Fazenda projeta crescimento adicional do PIB de ao menos 12% em 15 anos
No fim de junho, alguns medalhões da arrecadação fazendária e economistas fizeram publicar um manifesto duro contra a proposta de reforma tributária, por eles rotulada como “uma das piores do Brasil”. Assinado por Marcos Cintra, ex-secretário da Receita Federal do governo Bolsonaro, Everardo Maciel e Jorge Rachid, também ex-secretários, Felipe Salto, secretário da Fazenda de São Paulo até o ano passado, e José Roberto Afonso, professor do Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa, entre outros, o texto condena o substitutivo da PEC 45. A reforma tributária do consumo, dizem os autores, prometia fundir Cofins, PIS, IPI, ICMS e ISS. O substitutivo daquela PEC nega essas pretensões e parece trilhar a marcha da insensatez, ao propor a instituição de dois novos tributos, a Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS), no âmbito federal, e o Imposto sobre Bens e Serviços (IBS), no subnacional. O primeiro resultaria da fusão de Cofins e PIS, e o segundo derivaria da fusão de ICMS com ISS.
“Com todo respeito aos autores, sua posição sobre a reforma é lamentável. Dizer que o texto apresentado é uma das piores reformas da história do País não faz o menor sentido. As mudanças previstas são um enorme avanço em relação à situação atual do sistema tributário. E a reforma não ficaria melhor, mas pior, se seguíssemos algumas das ideias defendidas pelos signatários”, dispara Gobetti.
O pesquisador tem denunciado situações em que juristas e economistas conseguem faturar alto com o caos tributário e com a baixíssima tributação sobre suas atividades de consultoria. Há duas situações vantajosas, chama atenção Gobetti, em termos de tributação para profissionais liberais que prestam serviço como pessoa jurídica em vez de física. A primeira delas é o caso do Simples, em que a tributação total (incluindo imposto de renda) é bastante baixa, entre 6% e 12%, e essas empresas não serão afetadas pela reforma. São empresas que faturam até 4,8 milhões anuais e continuarão a pagar seus impostos exatamente como hoje. O outro caso é o das empresas que faturam acima de 4,8 milhões anuais, mas estão no lucro presumido e também possuem uma tributação favorecida, pagando uma carga tributária que normalmente se situa em torno de 17%, mas pode cair para 12% no caso das sociedades uniprofissionais, em que o ISS é simbólico. “Por isso essa turma não quer o fim do ISS e não porque esteja realmente preocupada com autonomia federativa”, dispara o economista.
A última reforma tributária digna do nome foi feita em 1965, um ano depois do golpe. Desde então, os sucessivos remendos produziram um Frankenstein. Ganha quem pode mais: ricos e sonegadores. Caso consiga completar a reforma – e não se contentar com a mera simplificação do sistema –, o governo Lula dará um passo muito mais efetivo e duradouro para combater a vergonhosa desigualdade. Embora a carga total, na casa dos 30%, não seja baixa quando comparada a nações de renda semelhante, para os 10% do topo da pirâmide, o Brasil é um verdadeiro paraíso fiscal. •
Publicado na edição n° 1267 de CartaCapital, em 12 de julho de 2023.
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