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Chamas atiçadas

Por trás da recente onda de violência na Cisjordânia, o avanço das colônias judaicas em territórios palestinos

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Leniência. As Forças de Segurança de Israel fecham os olhos para os violentos ataques de colonos judeus extremistas – Imagem: Jaafar Ashtiyeh/AFP
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Cinco buracos de bala marcam as paredes e a janela do Restaurante Hummus, modesta lanchonete perto do assentamento de Eli, na rodovia construída por Israel que percorre toda a extensão da Cisjordânia ocupada. Em 20 de junho, dois combatentes do Hamas, grupo militante que controla a Faixa de Gaza, mataram quatro pessoas no local. O incidente foi desencadeado por um grande ataque do exército israelense na cidade de Jenin, na Cisjordânia, que matou ao menos cinco pessoas. O ataque ao restaurante, por sua vez, levou no dia seguinte a uma vingança violenta de colonos israelenses em aldeias palestinas vizinhas, em que uma pessoa foi morta e cerca de 30 casas e 60 carros foram incendiados.

A violência olho por olho acirra as tensões no período mais sangrento em Israel e na Cisjordânia em décadas. Mas, durante a visita do ­Observer na quinta-feira 29, embora ainda houvesse cacos de vidro de para-brisas espalhados pelo chão e meia dúzia de soldados patrulhando os arredores, os negócios tinham recuperado uma normalidade inquieta.

Amigos de Elisha Antman, de 18 anos, que morreu no ataque, estavam sentados do lado de fora do restaurante vendendo camisetas com sua imagem. “Meu filho de 15 anos trabalha neste restaurante. Naquele dia ele não estava no local, mas eu não sabia disso e não conseguia falar com ele”, diz Eliana Passentin, que atua como advogada internacional para o conselho do assentamento de Mateh Binyamin. “Você não se sente melhor ao descobrir que os filhos de outra pessoa foram mortos.”

“Estamos acostumados com ataques, mas é estranho comprar comida num lugar onde há uma semana judeus foram assassinados”, comenta um cliente que se identificou como David. Ele estava usando quipá branco de malha, típico de um sionista religioso, que acredita na judaização da terra bíblica de Israel como um chamado divino. “É simples”, disse o companheiro de David, que não quis se identificar. “Precisamos sitiar os árabes, ­bloquear as estradas. Isso conteria os ataques.”

Israel ganhou o controle da Cisjordânia e da Faixa de Gaza após a Guerra dos Seis Dias, em 1967. Os dois territórios palestinos foram ocupados. Colonos israelenses começaram a mudar-se em massa para as áreas palestinas na década de 1990 e, desde que as negociações de paz mediadas pelos EUA fracassaram, em 2014, seu número e a quantidade de terras que controlam aumentaram dramaticamente. Os israelenses em Jerusalém Oriental e na Cisjordânia agora somam 700 mil habitantes.

Incidentes de violência de colonos – a incluir espancamentos, tiroteios, vandalismo e roubo de propriedades e gado, com o objetivo de expulsar os palestinos de ­suas terras – ocorrem diariamente em toda a Cisjordânia há anos. As Forças de Defesa de Israel (FDI) fecham os olhos. Mesmo quando os ataques são documentados, dados policiais analisados pela ONG israelense Yesh Din entre 2005 e 2021 mostraram que 92% de todas as reclamações palestinas foram canceladas sem acusações formais.

Seis meses após retomar o cargo de premier, com o governo mais de direita da história de Israel, ­Benjamin Netanyahu aprovou um recorde de 13 mil assentamentos judaicos na Cisjordânia. Os ataques de colonos, descritos como “crimes nacionalistas”, aumentaram tanto em escopo quanto em escala desde que Netanyahu voltou com novos aliados, vários deles colonos extremistas.

Netanyahu conseguiu encerrar a crise política de quatro anos em Israel, desencadeada por seu julgamento por corrupção, persuadindo três partidos marginais de extrema-direita a se fundirem na chapa dos Sionistas Religiosos. Na eleição de novembro, as promessas da chapa de adotar uma postura mais dura contra os palestinos ajudaram a mais que dobrar suas cadeiras, de seis para 14.

Incidentes de violência de colonos estão ocorrendo agora a uma taxa de três por dia, segundo dados da ONU, contra dois por dia em 2022. Em fevereiro, o mundo ficou chocado com as cenas de uma invasão sem precedentes de colonos na aldeia palestina de Huwara, em resposta ao assassinato de dois irmãos israelenses. Cerca de 400 jovens invadiram Huwara durante a noite, incendiando casas, empresas e carros e matando uma pessoa. As FDI foram duramente criticadas pela inércia em agir.

Fonte: Guardian Graphics

Essas cenas se repetiram na semana passada, após os assassinatos no restaurante de beira de estrada em Eli. Desta vez, Netanyahu condenou esses ataques de vingança e pediu ao público que não faça justiça com as próprias mãos. O chefe do Estado-Maior das FDI, tenente-general Herzi Halevi, também fez uma declaração contundente durante a formatura de oficiais de combate na semana passada: “Um oficial das FDI que fica parado ao ver um cidadão israelense planejando lançar um coquetel molotov numa casa palestina não pode ser um oficial”.

Integrantes da nova elite política estão, porém, atiçando as chamas. O ministro das Finanças, Bezalel Smotrich, que também detém um cargo na pasta da Defesa que lhe dá o controle da política israe­lense na Cisjordânia, pediu mais de uma vez que Huwara seja “apagada” e descreveu os ataques da semana passada como “contra-ataques civis”.

O líder do partido Poder Judaico e ministro da Segurança Nacional, Itamar Ben-Gvir, implorou na semana passada ao público judeu que “corresse para o topo das colinas” – um chamado para estabelecer postos avançados, nome dado a assentamentos ilegais mesmo sob a lei ­israelense. A situação cada vez mais volátil na Cisjordânia expõe a profunda, talvez intransponível, divisão entre os recém-criados líderes extremistas de Israel e o sistema de segurança, que durante anos preferiu manter a ocupação dos territórios palestinos de maneira mais silenciosa.

Para a base nacionalista religiosa, o governo e o exército não estão fazendo o suficiente para deter os ataques terroristas: um comandante sênior que fez uma visita de condolências a uma das famílias enlutadas de Eli foi chamado de “traidor” e “assassino”, antes de ser expulso.

Todos concordam, porém, que há muitos interesses em jogo e que o ciclo de violência provavelmente se intensificará. “Estamos apenas tentando viver nossas vidas normais e voltar para casa com nossos filhos à noite, mas os aliados de Israel nos culpam por construir casas, em vez de condenarem o terrorismo”, disse Passentin. “Não faria diferença se minha família morasse em Eli ou no meio de Tel-Aviv. Somos alvejados e mortos simplesmente por sermos judeus.” •


Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves.

Publicado na edição n° 1267 de CartaCapital, em 12 de julho de 2023.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Chamas atiçadas’

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