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O valor da vida

A morte de cinco milionários na Aventura do Titan ofusca a tragédia das centenas de migrantes na costa grega

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Comoção seletiva. A mídia concentrou-se nas vítimas do Titan e relegou a segundo plano a tragédia grega – Imagem: Menelaos Myrillas/SOOC/AFP e OceanGate Expeditions
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Anees Majeed perdeu cinco parentes no barco afundado na costa da Grécia em 14 de junho e assistiu com descrença e raiva crescente ao esforço frenético e multimilionário para resgatar cinco outros homens perdidos no mar durante uma expedição às profundezas para ver os destroços do Titanic.

Como milhares de outros compatriotas em todo o Paquistão, Majeed, estudante de Direito na Caxemira administrada pelo Paquistão, lamentou as orações fúnebres sem um corpo para enterrar. Ao menos 350 cidadãos paquistaneses estavam na embarcação superlotada, confirmou o ministro do Interior, Rana Sanaullah, na sexta-feira 23. Há pouca esperança de que os primos de Majeed sejam encontrados ou trazidos para casa. A família está atormentada por evidências crescentes de que as autoridades europeias sabiam que o barco estava com problemas, mas não intervieram.

Quando eles começaram o luto, uma vasta operação, envolvendo embarcações de vários países, estava, no entanto, em andamento. Seu alvo eram cinco homens, também perdidos nas profundezas do oceano, mas numa viagem que escolheram como uma aventura, e não motivada pelo desespero. Dois deles também eram cidadãos paquistaneses, mas do extremo oposto da escala social dos primos de Majeed – o empresário Shahzada ­Dawood e seu filho Suleiman, de 19 anos.

O contraste entre duas tragédias marítimas, a escala dos esforços para resgatar seres humanos em perigo e a resposta da mídia global a ambas as histórias geraram um debate no Paquistão sobre a desigualdade nacional e internacional e os diferentes valores atribuídos às vidas humanas. “Ficamos chocados ao saber que milhões seriam gastos nessa missão de resgate”, disse Majeed. “Eles usaram todos os recursos, e muitas notícias saíram dessa busca. Mas eles não se preocuparam em procurar centenas de paquistaneses e outros que estavam no barco grego.” O estudante prossegue: “Este é um critério duplo… eles poderiam ter salvado muitos indivíduos se quisessem, ou ao menos poderiam ter recuperado os corpos”.

“A resposta ao submersível foi muito mais empática e cheia de pesar”, lamenta o antropólogo Arsalan Khan

“Não é culpa de cinco homens que centenas de outros tenham morrido nas costas gregas. Mas é culpa de um sistema em que as disparidades de classe são tão grandes”, disse uma jornalista de uma importante agência paquistanesa, que pediu para não ser identificada. “Quando alguém aponta isso, é mal interpretado como ódio.” A cobertura da mídia local sobre as mortes de migrantes, ressalta a jornalista, também pode ter sido reduzida pelo cansaço de relatar anos de mortes e traumas da violência e desastres naturais.

Ainda assim, a escala da tragédia no Mediterrâneo foi difícil de entender. Com mais de 300 mortes, o número superou qualquer ataque terrorista na história do país, disse Sanaullah. As autoridades muitas vezes lentas do Paquistão disseram ter prendido 14 suspeitos em conexão com o suposto tráfico humano, e a nação teve um dia de luto nacional.

Isso pouco adiantou para consolar os parentes enlutados. Abdul Karim, 36 anos, lojista de um vilarejo perto da fronteira com a Índia, na Caxemira, perdeu um primo e um tio no barco. “É triste que um submarino transportando cinco homens ricos tenha recebido muito mais consideração, cobertura e importância do que os migrantes no barco grego”, lamenta. “Milhões de dólares devem ter sido gastos para resgatar os ricos, mas para os pobres essa oportunidade não existe. Nem o governo paquistanês estava prestando atenção no assunto.”

Para Arsalan Khan, professor-assistente deAntropologia no Union College, em Nova York, a intensa cobertura da mídia do Paquistão e internacional à família Dawood deu a eles uma humanidade na perda que não foi concedida àqueles que morreram no Mediterrâneo. “A resposta ao submersível Titan foi muito mais empática e cheia de pesar”, disse. “Tais diferenças dão a impressão de que são os últimos que mais merecem empatia e compaixão.” Elas destacam os valores desiguais atribuídos a diferentes vidas humanas, consciente ou inconscientemente, pela sociedade e pelos governos, acrescentou.

Melhoras na segurança podem evitar outras tragédias como a implosão do ­Titan, mas é improvável que o fluxo para a Europa em embarcações impróprias pare sem mudanças profundas no sistema econômico que levou centenas a apostar – e perder – suas vidas em uma jornada que sabiam ser extremamente perigosa. “Eu sei de uma coisa: os pobres farão essa jornada mortal novamente, pois vivem na miséria no Paquistão e as condições econômicas são insuportáveis”, disse Majeed. “Os governos fariam melhor impedindo isso, em vez de afogá-los em alto-mar.” •


Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves.

Publicado na edição n° 1266 de CartaCapital, em 05 de julho de 2023.

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