

Opinião
Racismo: ontem, hoje e sempre
Os insultos racistas dirigidos a Vini Jr. também têm lugar no Brasil. Qual negro do País pode afirmar que nunca foi vítima de preconceito?


Desde 2018 o atacante Vinícius Júnior, revelação do Flamengo, joga na Espanha pelo clube Real Madrid. Parece que o pessoal do clube não estava satisfeito nem com seu desempenho nem pelo valor (alto) de seu passe. Assuntos para discussão interna entre o clube e o jogador. Mas não é este o ponto que nos interessa aqui.
Do ponto de vista das manchetes publicadas nas primeiras páginas dos jornais, pode ser que o caso das agressões racistas de parte do público espanhol contra Vinícius Júnior esteja ultrapassado. Mas como podemos considerar ultrapassado um tema que permeia a história do Brasil desde o nosso passado (passado?) escravocrata? Sim, mais uma vez somos obrigados a falar sobre racismo. O ponto que nos interessa são as ofensas proferidas contra ele pela torcida, que nem ao menos teve imaginação. Das arquibancadas vieram gritos de (que clichês!) “macaco” ou “mono” (o mesmo, em espanhol). Não vale a pena aqui relatar a sequência de brigas e confusões que marcou a partida. Importam para nós, brasileiros, os crimes de racismo cometidos por parte dos torcedores. Poderiam ter acontecido aqui.
No Brasil, algum cidadão descendente dos escravizados pode afirmar que passou a vida sem ter sido vítima de racismo?
Herdamos dos africanos muitas características das quais nos orgulhamos. Os ritmos, a começar pelo samba, passando pelo maxixe e a rumba, definem certa identidade nacional e encantam os estrangeiros. Os temperos, as receitas herdadas de cozinheiras descendentes de africanos. Os tons de pele, advindos da miscigenação nem sempre consentida: quantas mulatas e mulatos não são descendentes de africanas estupradas por seus “proprietários”? A mulata, principalmente no século XX, tornou-se, porém, uma espécie de patrimônio estético nacional. Não há mulatos e mulatas nos Estados Unidos porque ali os colonizadores, além de mais rigorosos quanto aos preceitos religiosos, talvez tivessem horror ante a possibilidade de obter prazer com o corpo das escravizadas. Mas esta sempre foi uma prerrogativa dos “proprietários” daqui: desfrutar de sua posse como lhes der na telha. Até aí, aceitamos bem a miscigenação. Deveríamos nos envergonhar.
O Brasil foi o último país livre a abolir a escravidão. Só que a lei que leva o nome do abolicionista Joaquim Nabuco não previu nenhuma reparação aos libertos. Nos EUA, alguns estados do Sul escravista decidiram que os libertos teriam direito a um pedaço de terra cultivável e um animal de tração para recomeçar a vida fora das plantations. Historicamente, a medida fez uma enorme diferença. Há muitos negros de classe média no país. Um deles, Barack Obama, foi presidente.
Aqui os negros recém-libertos foram entregues à própria sorte. O senhor de escravos que explorava 300 homens sem lhes pagar nada, ao se ver diante da obrigação de lhes pagar um salário, decidia tranquilamente manter 50 ou 60 dos mais jovens e mais fortes em regime dobrado de trabalho e mandar os outros para o olho da rua. Daí a associação racista entre “negro” e “pobre”. Ou pior, pois muitos ficaram sem trabalho, entre negro e “vagabundo”.
Quantos negros de classe média existem no Brasil? Jogadores de futebol como Pelé e Garrincha. Atores, como Antônio Pitanga, Taís Araújo e Lázaro Ramos. Só consigo me lembrar de uma negra na política: Benedita da Silva (esposa de Pitanga), vice de Anthony Garotinho, governou o Rio de Janeiro quando ele deixou o cargo.
Sabemos o quanto nossa cultura deve aos africanos: o samba, o requebrado, o vatapá e o caruru são heranças muito apreciadas. Sem falar do candomblé, religião onde não existe o pecado: o “santo”, sem hipocrisias, só exige oferendas que lhe agradem.
Mas faça um teste: se estiver andando à noite e, na mesma calçada, vier um negro em sua direção, você não tenta atravessar a rua? Tenho me obrigado a não praticar esse ato de racismo light e posso afirmar aqui, sem demagogia, que nunca fui assaltada por um negro. Sorte, dirão. Prefiro pensar como dado estatístico. Fui abordada (sem intimidação) uma vez por um homem negro que se disse morto de fome. Tentei dar-lhe dinheiro para comprar um almoço e ele argumentou: “Moça, não vão me deixar entrar em lugar nenhum. Sou preto, estou sujo, moro na rua… compra uma quentinha pra mim, por favor”. Comprei, claro. Bem sortida.
Mulher branca de classe média, naquele dia me senti confortada por ter tido a chance de oferecer um almoço ao rapaz. Mas a fome dele, assim como a de muitos descendentes de escravos jogados nas ruas, se repetiria no dia seguinte. Fome de comida, de reconhecimento e de dignidade. •
Publicado na edição n° 1266 de CartaCapital, em 05 de julho de 2023.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Racismo: ontem, hoje e sempre’
Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.
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